quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O maestro que curtia o silêncio

É comum que a morte de um artista seja seguida da criação de uma mitologia em torno de sua vida, ressignificando - e às vezes obscurecendo - o seu trabalho. No caso do maestro austríaco Carlos Kleiber (1930- 2004), que ainda em vida viu a criação em torno de si de um universo rico de lendas e causos, o caminho bem que poderia ser o inverso.

Ele cresceu na Argentina, para onde o pai, o lendário maestro Erich Kleiber, fugiu durante o nazismo. De volta à Europa, foi conquistando espaço em diversas casas de ópera da Alemanha. Logo, vieram os convites para assumir algumas delas. E ele disse não. Ao longo de toda a carreira, atuou apenas como convidado, condicionando suas aparições a cachês altos e grandes quantidades de ensaios. Ainda assim, ficou conhecido pelos cancelamentos constantes.

Herbert Von Karajan brincava que Kleiber só regia "quando a geladeira de casa ficava vazia". Outro colega, Claudio Abbado, foi menos ácido. "Há vários níveis de compreensão de uma obra", disse certa vez ao New York Times, "mas é certo que ninguém conhece uma partitura tão bem como Kleiber."

A mesma dinâmica estabelecida com as orquestras Kleiber mantinha com as gravadoras. Recusou-se a assinar contratos de exclusividade e, segundo um produtor da toda poderosa Deutsche Grammophon, mesmo quando todas as condições exigidas lhe eram fornecidas, não havia garantia nenhuma de que ele apareceria para trabalhar. Por conta disso, foram poucas as gravações deixadas por ele - e elas agora são reunidas em uma caixa de 12 CDS da Deutsche Grammophon. Revelam, de cara, o repertório pequeno, que se limitava, em grande medida, às obras para as quais o pai tinha deixado interpretações de referência (Freud teria se divertido...). De Beethoven, as sinfonias n.º 5 e 7; de Brahms, a sinfonia n.º 4; de Schubert, a terceira e a oitava. Na ópera, O Franco Atirador, de Weber, Tristão e Isolda, de Wagner, La Traviata, de Verdi, e O Morcego, de Strauss. E só.

Os compassos iniciais da Quinta de Beethoven; o senso de humor com que cria as cenas no Morcego; as texturas orquestrais no Brahms; a riqueza de coloridos que extrai da partitura de Verdi; o approach quase camerístico no Tristão e Isolda, em especial no que diz respeito ao tratamento das vozes. São muitos os momentos geniais identificados ao longo dos discos que compõem a caixa. Mais importante, porém, é notar os elementos comuns às suas interpretações - e o mais evidente deles é o senso de arquitetura com que se aproxima das obras. Há um cuidado extremo com o detalhe, com cada passagem, que passa por suas escolhas de tempo - e isso de alguma maneira dialoga com uma percepção mais ampla, que apresenta a peça como um todo integrado.

A mitologia em torno de sua carreira é interessante porque fez dele um caso raro - viveu à parte da indústria e, ainda assim, é uma de suas estrelas mais festejadas. Por que tamanho talento musical optou por se afastar da música é algo que apenas ele - talvez - poderia explicar. De certa forma, como diz o jornalista e musicólogo inglês Norman Lebrecht, ele foi o grande não-maestro - seus cancelamentos e os projetos que deixou pela metade ficam na mente de sonho do ouvinte. Não deixa de ser um exercício divertido. No entanto, melhor - por que não? - ouvir aquilo que de fato existiu. É pouco, mas bastante


Jornal O Estado de São Paulo
07.08.2010

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