Até onde os
princípios éticos e morais devem valer e o pragmatismo deve começar a
prevalecer? Existe um ponto em que valores importantes devem ser postos de lado
e uma atitude mais lógica deva ser tomada?
Este debate
é antigo e recentemente veio à tona apresentado de uma forma extremamente crua
e atualizada no filme Escudo de Palha (Wara no tate, 2013), do polêmico diretor
japonês Takashi Miike, responsável pelo extremamente violento Ichi, o
assassino.
Neste obra,
o diretor retrata um problema grandioso exposto em um roteiro muito bem
desenvolvido. A história aborda Kyomaru (Tatsuya Fujiwara), um assassino
psicopata que estupra e mata crianças. Após violentar e tirar a vida da neta do
bilionário Ninagawa (Tsutomu Yamazaki), uma série de anúncios encomendados pelo
empresário aparece em diversos meios de comunicação oferecendo um recompensa de
um bilhão para quem matar o bandido, não importa de qual maneira. Kyomaru se vê
então em uma enrrascada quando as pessoas na rua começam a persegui-lo e sua
única opção de sobrevivência é entregar-se à polícia.
Após ele se
entregar em uma cidade de interior, uma equipe de policiais é designada para
transportá-lo a Tóquio, onde será julgado. O grupo é liderado pelo inquebrantável
Kazuki Mekari (Takao Ohsaw), que demonstra desde o início sua disposição em
levá-lo à salvo, junto à igualmente fiel Atsuko Shiraiwa (Nanaki Matsushima) e
outros três.
O que se tem
daí em diante é um verdadeiro declínio de valores sociais quando um grande
número de pessoas tenta executar Kyomaru para receber a recompensa.
Primeiramente, uma enfermeira tenta envenená-lo. Na saída, um mecânico é preso
ao sabotar o avião em que o criminoso seria levado. A alternativa é levá-lo em
um comboio por terra, que logo é atacado por um caminhoneiro de forma suicida.
Em meio ao caos do acidente, um grupo de policiais que compõe a escolta
investe, sendo detido por Mekari. Até o sequestro de uma criança para ser
trocada por Kyomaru acontece.
Aos poucos o
clima de insegurança e de desconfiança toma conta dos cinco policias da equipe.
Por onde andam aparecem pessoas dispostas a tudo para obter a recompensa. Como
também há uma recompensa para quem denunciar a posição do assassino durante seu
transporte, surge a desconfiança entre os próprios responsáveis por sua guarda
por sempre serem localizados.
A missão de
levá-lo a julgamento acaba provocando imenso caos pelo Japão, contando com
vítimas fatais. A pergunta que se faz é: vale realmente manter a vida de alguém
como ele? Durante todo o filme, Kyomaru se mostra uma pessoa desprezível. Ele é
um psicopata plenamente disposto a matar sem nenhum remorso. Então toda vez em
que algum incidente mais grave ocorre e inocentes morrem, passa pela cabeça do
espectador se simplesmente executá-lo ou então deixá-lo morrer não seria a
melhor das opções.
A história
envolve os mais variados tipos de pessoas, como um homem desesperado com
dívidas, um grupo de mafiosos dentro de um metrô e inclusive o pai de uma
vítima de Kyomaru, desesperado ao se deparar com um esforço tão grande em
salvar o psicopata e não haver tal compromisso para cuidar de sua filha. As
circunstâncias variam, mas sempre se encontram no ponto comum sobre dever ou
não preservar a vida do bandido.
Um dos
aspectos abordados pela obra não é apenas a ambição humana, mas as próprias
consequências de fatores econômicos sobre as pessoas. Especificamente, o
impacto da crise de 2008 sobre a sociedade japonesa, por todas as pessoas que
tentam matar Kyomaru estarem com enormes problemas financeiros. Esta é uma das
grandes sacadas do filme, em tirar a ótica macro usualmente apontada nos
noticiários da televisão e levar o foco para os indivíduos que são atingidos
pelo caos reinante nas finanças.
O filme fez
parte da mostra do Festival de Cannes em 2013, onde não obteve boa recepção.
Muito provavelmente isso ocorreu pelo fato de Escudo de Palha não ter maiores
ambições do que ser uma boa história. Não há grandes impactos visuais exceto
algumas cenas de ação. O filme possui momentos de tensão, sendo o ponto alto
quando Mekari coloca a arma na boca de Kyomaru e reflete se não deveria
matá-lo. O roteiro segue de forma bastante linear, sem nenhuma variação
narrativa. Um dos pontos altos na história é o detalhamento dos personagens, muitos
deles possuindo um grau de profundidade em coerência com a história.
Em um mundo
que começa a absorver os efeitos da crise econômica e cola os cacos de suas
consequências, Takashi Miike lança um pouco de gasolina no fogo, propondo um
olhar mais humano sobre os indivíduos afetados enquanto as medidas tomadas se
focam em grandes bancos e instituições. Ao mesmo tempo, nos mostra o quão
difícil pode ser ter de tomar a decisão correta, mesmo quando agir pela forma
mais ética e mantendo algo importante - a dignidade de uma nação inteira - pode
terminar com um resultado negativo.
O diretor
acerta em cheio em sua proposta. O filme traz o espectador para dentro de todos
este dilemas, variando conforme suas expectativas prévias a ficar de um lado ou
outro em suas opiniões quanto ao destino de Kyomaru. Talvez para o público
brasileiro, acostumado com um Estado simplesmente ausente e com altos índices
de violência rodeando o dia a dia, opinar pela execução sumária seja uma opção
fácil. E é essa a outra visão que Escudo de Palha pode nos passar: que a
construção de valores pode fundamentar uma sociedade, e que zelar por eles,
mesmo que a alto custo, pode ser o que a sustentará de pé.
Guilherme Carvalhal
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