Cinéfilo, compositor trata, além de música, de temas ligados
ao cinema
O compositor santista Gilberto Mendes é cinéfilo inveterado.
Vê, pelo menos, um filme por dia. Nada mais natural, portanto, que chamar sua
coletânea de artigos de Música, Cinema do Som (Editora Perspectiva, 2013). São
textos publicados de 1966 a 2012 em jornais como A Tribuna, Folha de S. Paulo,
Jornal da Tarde e Estado.
Nesses textos, as paixões do maestro se cruzam e se
entrelaçam. Ao falar de música, fala de cinema, e vice-versa. O ouvido
privilegiado do compositor de vanguarda, criador do Festival Música Nova,
detecta a trilha sonora dos filmes, que em geral passa despercebida pelo
público e mesmo pela crítica. Observa como alguns cineastas usam a música de
maneira integrada à narrativa, como é o caso de Stanley Kubrick, cujo 2001: Uma
Odisseia no Espaço, por exemplo, seria impensável sem o Richard Strauss de
Assim Falou Zaratustra, o Danúbio Azul, ou György Ligeti de Lux Aeterna. Em O
Iluminado, Kubrick se vale de Béla Bartók, Ligeti e Penderecki para criar o
clima terrível no Hotel Overlook. As artes dialogam, mas poucos sabem fazê-las
conversar e é por isso que Kubrick era Kubrick.
Ao mesmo tempo, Gilberto se queixa de que o cinema
brasileiro não sabia usar a rica música que tinha à disposição. Abre algumas
exceções – a principal, Glauber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol,
valendo-se magnificamente de Villa-Lobos. Compositor utilizado por Glauber em
vários dos seus filmes, aliás. Mesmo no obscuro Claro, filmado na Itália,
ouvimos Villa. Mas o baiano era heterodoxo. Empregava em seus filmes de Villa-Lobos
a Sérgio Ricardo, e abre sua obra-prima, Terra em Transe, com um lindo ponto de
candomblé.
Não é o caso geral. Por exemplo, no artigo Um Homem, Uma
Mulher, e a Bossa Nova, Gilberto lamenta que tenha sido um filme romântico
francês, dirigido por Claude Lelouch, a empregar a bossa nova como nenhum
diretor brasileiro havia feito até então. O artigo é de 1967 e situa-se no
interior de um debate intenso entre nacionalistas e universalistas. Ele se
surpreende de que a bossa nova não apareça mais nos filmes nacionais e
desconfia de preconceito contra o gênero, que seria “insuficientemente
brasileiro” para alguns críticos. Em dois ou três parágrafos, discute, de forma
simples e profunda, o equívoco de conceitos nacionalistas estreitos. “Bem
analisadas, mesmo aquelas expressões tidas como nacionais são de origem
universal. Nossa famosa música nordestina repousa nos modos mais antigos e
universais do canto gregoriano, disseminados pelos padres no seu trabalho de
educação religiosa no interior dos Estados brasileiros”, escreve.
Notamos então, na sequência de artigos, não apenas o apreço
do autor pelas relações entre música e cinema, mas a trajetória de uma
polêmica, debatida no espaço público dos jornais. Gilberto Mendes afinava-se
com a proposta de renovação estética que encontrava ressonância nos trabalhos
dos músicos de vanguarda, como Willy Corrêa de Oliveira, e dos poetas
concretos, Décio de Almeida Prado e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos.
Encontrava resistência nos tradicionalistas. Era uma guerra de guerrilhas,
travada no campo minado da ditadura militar. Ou seja, ninguém ali podia se dar
ao luxo de uma discussão estética de punhos de renda, com as urgências sociais
batendo às portas de todos. E às vezes quem batia à porta era a polícia da
ditadura mesmo. Tudo tinha outras implicações e a discussão estética também era
política.
Tudo se entrelaça. Quando a bossa entra em refluxo, o
retorno ao sambão quadrado soa como involução. Alguns se valem de Noel Rosa a
pretexto de recolocar a música brasileira em seus trilhos. Em As Outras Bossas
de Noel Rosa, Gilberto mostra a modernidade do poeta da Vila e de como a bossa
nova já estava contida em seus sambas. Tempo de polêmica, enfim.
Um testemunho desse clima está presente em A Música de
Vanguarda Segundo Eleazar de Carvalho: Descrição de Uma Luta, que saiu
publicado em duas partes. Nelas, Gilberto narra o embate entre espírito
autoritário do grande maestro e os jovens radicais que o desafiavam. No meio de
um concerto, regido por Eleazar no Municipal de São Paulo, três jovens
puseram-se a cantar na plateia o iê-iê-iê Juanita Banana. Na segunda parte,
revela os nomes dos “cantores”: Rogério Duprat, Willy Corrêa de Oliveira e
Décio Pignatari! Há um P.S. dos mais interessantes no artigo: “Poucos anos
depois, Eleazar rege o concerto para piano e orquestra de Willy Corrêa de
Oliveira e faz a estreia mundial do meu Santos Football Music no outono de
Varsóvia. Grande Eleazar!”
São assim os textos do maestro Gilberto Mendes: leves,
elegantes, combativos, dialéticos, sem qualquer dogmatismo ou ressentimento. De
maneira fragmentária, Música, Cinema do Som, propõe uma história informal dos
embates e paixões estéticas que nos polarizaram dos anos 1960 e seguem vivos
até hoje. Leitura indispensável.
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