terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Gilberto Mendes lança em livro textos publicados na imprensa

Cinéfilo, compositor trata, além de música, de temas ligados ao cinema

O compositor santista Gilberto Mendes é cinéfilo inveterado. Vê, pelo menos, um filme por dia. Nada mais natural, portanto, que chamar sua coletânea de artigos de Música, Cinema do Som (Editora Perspectiva, 2013). São textos publicados de 1966 a 2012 em jornais como A Tribuna, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde e Estado.
Nesses textos, as paixões do maestro se cruzam e se entrelaçam. Ao falar de música, fala de cinema, e vice-versa. O ouvido privilegiado do compositor de vanguarda, criador do Festival Música Nova, detecta a trilha sonora dos filmes, que em geral passa despercebida pelo público e mesmo pela crítica. Observa como alguns cineastas usam a música de maneira integrada à narrativa, como é o caso de Stanley Kubrick, cujo 2001: Uma Odisseia no Espaço, por exemplo, seria impensável sem o Richard Strauss de Assim Falou Zaratustra, o Danúbio Azul, ou György Ligeti de Lux Aeterna. Em O Iluminado, Kubrick se vale de Béla Bartók, Ligeti e Penderecki para criar o clima terrível no Hotel Overlook. As artes dialogam, mas poucos sabem fazê-las conversar e é por isso que Kubrick era Kubrick.

Ao mesmo tempo, Gilberto se queixa de que o cinema brasileiro não sabia usar a rica música que tinha à disposição. Abre algumas exceções – a principal, Glauber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, valendo-se magnificamente de Villa-Lobos. Compositor utilizado por Glauber em vários dos seus filmes, aliás. Mesmo no obscuro Claro, filmado na Itália, ouvimos Villa. Mas o baiano era heterodoxo. Empregava em seus filmes de Villa-Lobos a Sérgio Ricardo, e abre sua obra-prima, Terra em Transe, com um lindo ponto de candomblé.

Não é o caso geral. Por exemplo, no artigo Um Homem, Uma Mulher, e a Bossa Nova, Gilberto lamenta que tenha sido um filme romântico francês, dirigido por Claude Lelouch, a empregar a bossa nova como nenhum diretor brasileiro havia feito até então. O artigo é de 1967 e situa-se no interior de um debate intenso entre nacionalistas e universalistas. Ele se surpreende de que a bossa nova não apareça mais nos filmes nacionais e desconfia de preconceito contra o gênero, que seria “insuficientemente brasileiro” para alguns críticos. Em dois ou três parágrafos, discute, de forma simples e profunda, o equívoco de conceitos nacionalistas estreitos. “Bem analisadas, mesmo aquelas expressões tidas como nacionais são de origem universal. Nossa famosa música nordestina repousa nos modos mais antigos e universais do canto gregoriano, disseminados pelos padres no seu trabalho de educação religiosa no interior dos Estados brasileiros”, escreve.
Notamos então, na sequência de artigos, não apenas o apreço do autor pelas relações entre música e cinema, mas a trajetória de uma polêmica, debatida no espaço público dos jornais. Gilberto Mendes afinava-se com a proposta de renovação estética que encontrava ressonância nos trabalhos dos músicos de vanguarda, como Willy Corrêa de Oliveira, e dos poetas concretos, Décio de Almeida Prado e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Encontrava resistência nos tradicionalistas. Era uma guerra de guerrilhas, travada no campo minado da ditadura militar. Ou seja, ninguém ali podia se dar ao luxo de uma discussão estética de punhos de renda, com as urgências sociais batendo às portas de todos. E às vezes quem batia à porta era a polícia da ditadura mesmo. Tudo tinha outras implicações e a discussão estética também era política.

Tudo se entrelaça. Quando a bossa entra em refluxo, o retorno ao sambão quadrado soa como involução. Alguns se valem de Noel Rosa a pretexto de recolocar a música brasileira em seus trilhos. Em As Outras Bossas de Noel Rosa, Gilberto mostra a modernidade do poeta da Vila e de como a bossa nova já estava contida em seus sambas. Tempo de polêmica, enfim.

Um testemunho desse clima está presente em A Música de Vanguarda Segundo Eleazar de Carvalho: Descrição de Uma Luta, que saiu publicado em duas partes. Nelas, Gilberto narra o embate entre espírito autoritário do grande maestro e os jovens radicais que o desafiavam. No meio de um concerto, regido por Eleazar no Municipal de São Paulo, três jovens puseram-se a cantar na plateia o iê-iê-iê Juanita Banana. Na segunda parte, revela os nomes dos “cantores”: Rogério Duprat, Willy Corrêa de Oliveira e Décio Pignatari! Há um P.S. dos mais interessantes no artigo: “Poucos anos depois, Eleazar rege o concerto para piano e orquestra de Willy Corrêa de Oliveira e faz a estreia mundial do meu Santos Football Music no outono de Varsóvia. Grande Eleazar!”

São assim os textos do maestro Gilberto Mendes: leves, elegantes, combativos, dialéticos, sem qualquer dogmatismo ou ressentimento. De maneira fragmentária, Música, Cinema do Som, propõe uma história informal dos embates e paixões estéticas que nos polarizaram dos anos 1960 e seguem vivos até hoje. Leitura indispensável.


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