A simbologia por trás desse mito representa a Intolerância
diante do outro, do diferente, do desconhecido. Representa uma visão de mundo
totalitária daquele sujeito que quer modelar todos os seres a sua própria
imagem e semelhança. É a recusa da multiplicidade, da diversidade, da
criatividade, da originalidade.
Procusto ou “as cegueiras do conhecimento” esteve presente,
por exemplo, na consciência dos juízes de Sócrates, quando condenaram-no a
morte por ter “corrompido” a juventude ateniense; esteve presente também no
imaginário dos soldados romanos que perseguiam e matavam cristãos por seguir
uma religião que se opunha ao paganismo e a figura sagrada do Imperador;
continuou presente no Tribunal da “Santa” Inquisição que condenou à fogueira
todos àqueles que eram contrários aos seus dogmas: Giordano Bruno, Galileu
Galilei (foi poupado por ter negado suas teorias científicas) e até Joana
D´arc; esteve presente também na
consciência dos reis absolutistas; nas revoluções burguesas; no processo de
escravidão mercantil; na formação dos partidos nazi-fascistas; no extermínio de
milhões de judeus nos campos de concentração, de trabalho e também nas Guerras
Mundiais… (só para citar alguns poucos exemplos…)
O espírito de Procusto, esteve presente em várias etapas de
nossa História e ainda continua atormentando a Escola tanto quanto o processo
educativo, em outras palavras, está presente na consciência humana produzindo
“cegueiras”, erros e ilusões do conhecimento. Dessa forma:
Quanto sofrimento e desorientações foram causados por erros
e ilusões ao longo da história humana, e de maneira aterradora, no século XX!
Por isso, o problema cognitivo é de importância antropológica, política, social
e histórica.Para que haja um progresso na base no século XXI, os homens e as mulheres não podem mais ser brinquedos inconscientes não só de suas idéias, mas das próprias mentiras. O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez. (MORIN, 2003, p. 33)
Mas como perceber os erros, ilusões e cegueiras em torno do
conhecimento humano? Ou melhor, como reconhecer o fantasma de Procusto? O
filósofo francês Edgar Morin em seu livro: “Os sete saberes necessários à
Educação do futuro”, nos apresenta algumas explicações:
O conhecimento [...] é o fruto de uma tradução/reconstrução
por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro.
Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a
interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor,
de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento[...] A projeção de
nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas
emoções multiplicam os riscos de erro. (MORIN, 2003, p. 20)
Portanto, o conhecimento é um processo e produto da
consciência humana, na medida em que, colhe dados da realidade através de
habilidades de pensamento (tradução/reconstrução); dados que são construídos
pela percepção dos sentidos (tato, visão, audição, olfato e paladar);
processados por nossa imaginação e linguagem; armazenados na memória e
transmitidos pela oralidade. Através do processo de “tradução e reconstrução”
corre-se o risco do erro, pois a Interpretação (decorrente do processo do
pensar) depende da subjetividade do sujeito que conhece e de sua visão de mundo
(conjunto de costumes, tradições, hábitos, crenças, etc.) que são assimilados
socialmente.
Nesse argumento conceitual em torno dos erros, ilusões e
cegueiras que são inerentes no processo do conhecimento humano, Morin expõe,
pelo menos, duas idéias que merecem ser problematizadas: “A subjetividade do
sujeito que conhece” e a “sua visão de mundo”.
Quando pensamos em “subjetividade do sujeito que conhece”, e
nos remetemos a outras leituras de Morin, entendemos que o ser humano é ao
mesmo tempo sapiens, no sentido de ser dotado da racionalidade, mas também é
demens, isto é, capaz de condicionar seu pensamento e ação de acordo com sua
afetividade, desejos, medos, perturbações mentais, por suas emoções de maneira
geral. Isto quer dizer que subjetivamente, somos “atormentados” por nossas
emoções que também condicionam nossas atitudes. Dessa forma, sabemos que em
muitas ocasiões temos uma alta probabilidade de cometer erros e ilusões quando
agimos de acordo com “impulsos” afetivos, ao ponto de mentir para si próprio ou
projetar no outro nossos próprios erros, Segundo Morin:
Cada mente é dotada também de potencial de mentira para si
próprio (self-deception), que é fonte permanente de erros e ilusões [...] a
tendência a projetar sobre o outro a causa do mal fazem com que cada um minta
para si próprio, sem detectar esta mentira da qual, contudo, é autor. (MORIN,
2003, p. 21)
Mas também, podemos cometer o erro de agir com tamanha
racionalidade, ao ponto de nos desumanizar (perdendo o senso de solidariedade e
coletividade), como nosso amiguinho Procusto, ou nossa querida Escola que pode
ser caracterizada como uma “Instituição regularizadora, normalizadora de
comportamentos, seletiva e discriminatória” como alega a educadora Luiza
Cortesão da Universidade de Coimbra em palestra proferida no VI Colóquio sobre
Instituições Escolares da Universidade Nove de Julho em setembro de 2009.
A segunda consideração que permeia a definição de “cegueiras
do conhecimento” para Morin é a consciência de “visão de mundo” do sujeito, que
o autor irá classificar como “paradigmas do conhecimento”, estrutura que
condiciona os seres humanos a erros interpretativos da realidade, pois
direciona o seu conhecimento, pensamento e ação segundo concepções que são
inscritas culturalmente, é o que denomina imprinting cultural, “marca matricial
que inscreve o conformismo a fundo, e a normalização que elimina o que poderia
contestá-lo” (MORIN, 2003, p. 28). Portanto:
…O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento
consciente, controla-o, neste sentido, é também supraconsciente [...] o
paradigma instaura relações primordiais que constituem axiomas, determina
conceitos, comanda discursos e/ou teorias [...] Assim, um paradigma pode ao
mesmo tempo elucidar e cegar, revelar e ocultar. É no seu seio que se esconde o
problema-chave do jogo da verdade e do erro. (MORIN, 2003, p. 26; 27)
O fantasma de Procusto é justamente essa “Visão de mundo”
fechada em si mesma, paradigmática, dogmática e totalitária que imprime uma
matriz cultural que permeia nossas ações e pensamentos e que inevitavelmente
conduz os seres humanos a erros, ilusões e cegueiras no processo do conhecer,
fruto da consciência humana. Essa “visão de mundo” imprime idéias, valores,
percepções falsas da realidade, e de certa forma, bloqueia o conhecimento do
ser humano e inevitavelmente suas ações.
A Instituição escolar vem reproduzindo essa “visão
paradigmática” desde a sua origem, e atualmente problemas como: evasão,
repetência, indisciplina, violência, etc. são decorrentes de uma educação que
não é compatível com as novas demandas culturais e sociais de educandos, e
dessa forma, não oferece um tipo de ensino pertinente, global, contextualizado,
que orienta uma nova leitura da realidade, ocultando possíveis erros, ilusões e
cegueiras… chegar a esse tipo de conhecimento será desafio ou utopia? Derrotar
Procusto ou ser seu amigo?
Essas questões estão no cerne dos debates educacionais nos
últimos anos e devem ser problematizadas na perspectiva de encontrar um novo
modelo de Educação, adequado com as transformações tecnológicas e científicas
da atualidade.
Os desígnios do século XXI declaram novas matrizes
curriculares e novos ordenamentos disciplinares para receber essa nova demanda
de educandos. A complexidade dos problemas relativos à Educação atual exige
novos direcionamentos pedagógicos com a perspectiva de evitar novos erros e
cegueiras para as novas gerações e definitivamente aniquilar o fantasma de
Procusto.
André Rodrigues
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