Um pouco a título de
provocação, um pouco para tentar mostrar que ganhosincrementais podem fazer uma
grande diferença, escrevi para a edição impressa da Folha de sábado a coluna
"Os médicos e Darwin" em que sustentei que mesmo um profissional de
saúde mal equipado e mal formado --os médicos cubanos que o governo pretende
trazer para os rincões do Brasil-- é capaz de salvar vidas. Isso é
especialmente verdade em nichos ecológicos como a Amazônia, onde doenças fáceis
de identificar e de tratar, como diarreias e infecções agudas, ainda são uma
importante causa de óbito.
Usei o bom e velho Darwin para
lembrar os médicos de que, mesmo sem ser plenamente funcional, uma protoasa já
ajuda seu dono a planar e pode fazer com que ele não se machuque tanto numa
eventual queda. Esquilos voadores são a prova viva de que isso funciona.
Como um assunto puxa o outro,
comprei e li "Why We Get Sick: The New Science of Darwinian Medicine"
(por que nós adoecemos: a nova ciência da medicina darwiniana), do médico
Randolph Nesse e do biólogo George Williams. Trata-se de um clássico na
matéria, publicado no já longínquo ano de 1996.
De lá para cá, saíram muitas
novas obras sobre esse tema. Eu próprio já comentei algumas delas nesse espaço,
como "Supernormal Stimuli" (estímulos supernormais), de Deirdre
Barrett, e "The Wild Life of Our Bodies" (a vida selvagem de nossos
corpos), de Rob Dunn.
Apesar de trazer algumas
informações desatualizadas, "Why We Get Sick" permanece uma leitura
importante. É uma obra suficientemente geral para abordar as diferentes
vertentes da medicina darwiniana e funciona também como um manifesto dessa
ciência emergente. É até um pouco frustrante constatar que ela avançou menos do
que seria desejável nestas últimas duas décadas.
Com efeito, análises
darwinianas penetraram todas as esferas do mundo acadêmico, incluindo o bastião
das humanidades. Hoje encontramos comentários evolucionistas até sobre arte,
literatura e filosofia. Os resultados, é claro, são desiguais. Na medicina,
entretanto, que é por definição uma ciência biológica, a invasão foi
surpreendentemente menor. A maioria das faculdades ainda não ministra uma
disciplina específica. Uma possível explicação é que médicos costumam
interessar-se mais pelo como tratar do que pelas causas profundas das
moléstias. Não dá para afirmar que isso seja um mal, mas pode haver situações
em que deixar de compreender a gênese do problema nos faz abordá-lo de forma
errada. É um pouco isso que Nesse e Williams procuram mostrar.
Um exemplo eloquente é o da
miopia. Ela é claramente hereditária --algo em torno de 80%-- e extremamente
prevalente. Estima-se que de 800 mil a 2,3 bilhões dos 7 bilhões de terrestres
(de 11,5% a 33%) tenham algum problema refrativo, entre os quais a miopia é o
predominante.
Considerando que míopes sem
óculos somos praticamente inválidos, como é possível que um gene desses não
tenha sido eliminado pela seleção natural? Como é que feras, precipícios e a
total falta de pontaria não acabaram com os míopes na Idade da Pedra?
É aqui que as coisas começam a
ficar complicadas e interessantes. A miopia tem um importante componente
genético, mas também é fortemente determinada pelo ambiente. Ela provavelmente
inexistia na Idade da Pedra, assim como é extremamente rara entre os poucos
caçadores-coletores que ainda restam no planeta. Sua incidência é muito maior
nas sociedades industrializadas do que nas tradicionais. Por que?
A hipótese de Nesse e Williams
era a de que havia algo no processo de alfabetização que facilitava o surgimento
da miopia naqueles que tinham genes que os predispunham para isso.
"[Estudos mais
recentes]":http://www.aaojournal.org/article/S0161-642000363-6/abstract
sugerem que o gatilho não está na alfabetização, mas na quantidade de luz solar
a que a criança é exposta. Quanto mais tempo ela passa em ambientes internos,
maiores as chances de desenvolver o problema.
Isso já basta para mostrar que
não dá muito certo pensar a miopia como uma doença clássica, isto é,
compreendida como um ou mais genes defeituosos que codificam uma característica
maladaptativa. Faz mais sentido interpretá-la como uma variação genética que
provavelmente traz alguma vantagem adaptativa ainda desconhecida, mas que,
interagindo com as mudanças ambientais que experimentamos nos últimos séculos,
se tornou desvantajosa. Como desenvolvemos também óculos, lentes de contato e
cirurgias refrativas, ela não chega a ser fatal para seus portadores. De toda
maneira, essa perspectiva darwinina não apenas nos permite entender melhor o
fenômeno como até cogitar de estratégias preventivas, baseadas na exposição à
luz solar.
Coisas semelhantes valem para
muitas outras doenças e condições, que, à luz do darwinismo, deixam de ser
mistérios médicos para tornar-se narrativas biológicas. Moléstias cardíacas e o
mal de Alzheimer, por exemplo, também estão associados a certos genótipos -o
ApoE4 parece facilitar o surgimento de ambos--, que devem trazer vantagens para
seus portadores. Como o homem do Pleistoceno quase nunca tinha problemas do
aparelho circulatório (a comida era escassa, magra, e o regime de exercícios,
intenso) e raramente chegava à idade de apresentar sintomas de Alzheimer, esses
genes foram mantidos. E continuam a sê-lo, já que as dificuldades tendem a
aparecer apenas depois da fase reprodutiva, período em que a seleção já não
atua.
Esse tipo de abordagem permite
"insights" valiosos para pensar quase tudo, de cânceres a alergias e
doenças mentais, passando pelo enjoo das grávidas, engasgos a corrida contra os
micróbios (que estamos condenados a perder), além da senescência. Sugere,
também, que pesquisemos melhor condutas que hoje aplicamos acriticamente. A
febre, além de ser desagradável, pode matar e causar sérios problemas de saúde,
mas não podemos esquecer que ela é um eficaz mecanismo de defesa contra
infecções, que até répteis tentam emular quando estão doentes. Sem jamais
deixar de dar antitérmicos a quem precisa, valeria a pena investigar o que
perdemos ao fazê-lo.
De um modo geral, a medicina
evolutiva ensina que muitas das doenças são provocadas por genes que jamais
serão eliminados do "pool" genético da humanidade porque conferem
benefícios numa fase anterior. Mudanças ambientais podem torná-los mais ou
menos "doentios". Há uma outra família de problemas que têm origem
nas soluções de compromisso que a natureza produziu ao longo de nossa evolução.
As dores nas costas que acometem humanos, por exemplo, são consequência direta
de termos decidido andar sobre duas pernas.
Seria um tremendo erro se os
profissionais de saúde abandonassem o caráter instrumental da medicina e
passassem a dar mais atenção a teorias totalizantes do que a terapias e ao
controle clínico das moléstias, mas certamente não faria mal se procurassem
também pensar as doenças e disfunções com que se deparam sob um prisma darwinista.
Podem descobrir coisas muito interessantes, que eventualmente abrirão novas
possibilidades terapêuticas. Afinal, como dizem Nesse e Williams parafraseando
o grande geneticista Thodosius Dobzhansky, "nada em medicina faz sentido,
exceto à luz da evolução".
hélio schwartsman
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