Em 2012, foram 15 km de vias
tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas
circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil
banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes
de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte
público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam
trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste
mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural – que
chega à nona edição – mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
O formato do evento se inspira
numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito
Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor
artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival des Allumées,
que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em
espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam
pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais
de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
Em 2002, o prefeito de Paris,
Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz.
O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital
francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e
teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José
Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do
formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos
centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica
e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica,
conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava
que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter
aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que
norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou
“intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da
pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui
sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
O psicólogo João Augusto
Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos
pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do
mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do
Homem: Escritos sobre ¬Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que
imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do
lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e
fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de
jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes.
Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e
consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem
uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde
vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta
apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem
contato com o exterior, dá um coman¬do¬ e a rede faz todo o serviço. Os peixes
seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o
pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para
garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo
com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta
seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do
sujeito que a executa.
A rotina de uma cidade como São
Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole,
premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na
impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma
técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído¬ pelo “todo mundo” e o
espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Em sua conferência, Heidegger
salientou a impossibilidade de o homem tornar-se senhor absoluto da técnica,
pois algo sempre lhe escapará. Para Pompeia, a Virada Cultural é um desses escapes.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à
cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população
pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de
segurança e controle em que costuma se enredar. Durante 24 horas, São Paulo tem
a chance de pescar o peixe com as próprias mãos.
André Toso
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