Com trabalhos de Frida Kahlo,
Nan Goldin, Louise Bourgeois, Lygia Pape e outras 61 artistas, exposição no Rio
de Janeiro reacende a questão: mulheres ainda são minoria na arte?
Por volta de 1880, todas as
quintas-feiras à noite, um grupo célebre de amigos se reunia no Café Guerbois,
em Paris, para discutir os rumos que a arte deveria tomar. Era o ponto de
encontro de Auguste Renoir, Edgar Degas, Claude Monet e outros tantos. Os
artistas ali presentes possuíam ao menos duas características em comum: queriam
discutir os caminhos que enxergavam para seu ofício e pertenciam, todos, ao
sexo masculino. Ainda que o impressionismo tenha sido o primeiro movimento
artístico com integrantes mulheres e existam evidências de que a produção de
Mary Cassatt e Berthe Morisot não fosse desvalorizada pelos colegas, as
pintoras não eram bem-vindas nos espaços públicos de discussão. Considerava-se
a vida noturna de Paris um território masculino e só se abriam exceções para
aquelas que tinham o objetivo de servir ou entreter os homens. “Considero
escritoras e políticas uma aberração, um bezerro de cinco pernas”, disse
Renoir. “A mulher artista é ridícula, mas sou a favor das cantoras e das dançarinas.”
No século 19, não era só em
Paris que as mulheres causavam desconforto quando saíam da esfera privada para
a pública. A mostra The Centennial Exposition, realizada na Filadélfia em 1876,
destinou um pavilhão às artistas. De forma eclética, a curadoria reuniu
esculturas, bordados e pinturas, produzidos por profissionais e amadoras; fez
do gênero o critério para a disposição dos trabalhos. A opção foi contestada:
feministas radicais recusaram-se a participar, avaliando a escolha como uma
forma de institucionalizar a diferença. A exposição se ¬tornou, ao mesmo tempo,
um símbolo da luta por direitos iguais e uma evidência do status diferenciado
que a mulher ocupava.
Quase um século e meio depois,
o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro sedia uma mostra dedicada
exclusivamente ao gênero feminino e retoma, de certa forma, a mesma questão.
Elles: Mulheres Artistas na Coleção do Centro Georges Pompidou, cuja abertura
será dia 24 de maio, traz ao país 120 trabalhos de 65 expoentes, datados de
1907 a 2010. Estarão reunidas obras de criadoras pioneiras, como Frida Kahlo e
Louise Bourgeois, e contemporâneas, como Valie Export, Nan Goldin e Sophie
Calle. A elas, juntam-se brasileiras como Lygia Pape, Anna Maria Maiolino e
Anna Bella Geiger. Quando exibida na capital francesa, em 2010, a coletiva foi
acompanhada de debates e entrevistas que discutiam o recorte proposto pelo
museu parisiense. “Há sentido em segregar o trabalho das artistas? Existe um
componente feminista na mostra? Acho que devem ser questões abertas e a melhor
parte da exposição é sentir que as perguntas não foram respondidas”, diz a
crítica de arte Amelia Jones, em um vídeo publicado no site da instituição.
“Achei a exposição
absolutamente formidável. Por que não a organizaram antes?”, indaga a
historiadora Linda Nochlin, em outro depoimento. A estudiosa que vibra com a
iniciativa do Pompidou é autora de um dos primeiros artigos a questionar a
participação da mulher na história da arte, publicado no início dos anos 70. Em
Why Have There Been No Great Women Artists? (Por Que Não Tem Havido Grandes
Mulheres Artistas?), Linda trouxe para o centro das discussões uma questão até
então ignorada: qual o motivo de não existirem artistas do sexo feminino
equiparadas a Leonardo da Vinci e Michelangelo?
Explosão
No inventário da coleção real
espanhola, datado de 1582, a italiana Sofonisba Anguissola, pintora da corte
por cerca de 20 anos, é mencionada como uma excelente retratista, acima de
todos os pintores de sua época. Primeira artista de que se tem notícia a
adquirir fama, ela concebeu trabalhos confundidos com os de Ticiano e Leonardo
da Vinci. Sua atuação, no entanto, foi prejudicada pelo surgimento de uma estética
que valorizava a relação entre o material e o celestial. Essa dualidade
encontrou expressão máxima nas representações do nu feminino. Por ser mulher,
Sofonisba jamais poderia realizar tais obras sem violar o código social do
período.
Na mesma época, a fama de
¬Marietta Robusti como exímia retratista se espalhou pelas cortes da Áustria e
da Espanha. A possibilidade de a veneziana tornar-se pintora oficial de um dos
reinos foi rapidamente vetada por seu pai, o pintor Tintoretto. Retrato de um
Homem Velho com Garoto (c. 1585) é o único quadro que a maioria dos estudiosos
atribui a Marietta. Durante muito tempo, a obra figurou entre os melhores
trabalhos de Tintoretto. Somente em 1920 as iniciais de sua filha foram
descobertas.
Como ainda acontece hoje,
quanto maior a fama do autor, maior o preço atingido pelas obras de arte. Por
esse motivo, atribuíam-se a colegas homens mais conhecidos muitos trabalhos
produzidos por mulheres. Em 1922, por exemplo, o Metropolitan Museum, em Nova
York, adquiriu a tela Charlotte du Val d’Ognes acreditando tratar-se de um
Jacques-Louis David. Descobriu-se, em 1951, que a obra tinha sido realizada por
uma das alunas do pintor francês (sua identidade ainda é objeto de discussão).
O Metropolitan só fez a correção 26 anos depois. A pintura, enaltecida
inicialmente pelo próprio museu por expressar “um austero gosto do tempo”,
sofreu uma depreciação quando a autoria de David foi contestada. Rapidamente,
os historiadores passaram a enxergar no quadro um “tratamento gentil” e o “espírito
feminino”.
Até o fim do século 19, o
acesso à instrução artística era marcado pela desigualdade entre os sexos. A
admissão de mulheres na Escola de Belas-Artes na França, em 1887, foi
antecedida por uma década de intensos debates. Os refratários tinham como
argumento o desconfortável confronto das artistas com nus masculinos nas
classes de modelo vivo. Uma comissão para discutir o tema foi estabelecida na
própria academia. Numa das reuniões, a participante Virginie Demont-Breton se
surpreendeu com um grito do arquiteto Charles Garnier a respeito de homens e
mulheres estudarem debaixo do mesmo teto: “Isso produzirá uma explosão que irá
destruir por completo a arte”.
Gorila
No início dos anos 80, uma
série de pôsteres circulava pela cidade de Nova York. Um deles trazia em letras
garrafais o título As Vantagens de Ser uma Artista Mulher. E vinha acompanhado
de uma série de respostas: ser incluída em versões revisadas da história da
arte, trabalhar sem a pressão do sucesso, não ter de passar pelo embaraço de
ser chamada de gênio e assim por diante. As intervenções eram assinadas pelo
Guerrilla Girls, um grupo anônimo de artistas que até hoje se esconde por trás
de máscaras de gorila. O ¬coletivo surgiu para protestar contra um conjunto de
exposições na Europa e nos Estados Unidos que insistia em exibir, na sua
maioria, trabalhos assinados por homens. O objetivo era provar, por
estatísticas, a conduta misógina dos museus. Um dos trabalhos mais famosos do
Guerrilla poderá ser conferido na capital fluminense: num cartaz de 1989, A
Grande Odalisca, do pintor francês Jean-Auguste Dominique Ingres, tem seu rosto
substituído pelo de uma macaca. Abaixo da colagem há uma inscrição: “As
mulheres precisam estar nuas para entrar no Metropolitan Museum? Menos de 5% dos
artistas nas seções de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são
femininos”.
Os pintores modernistas, de
Renoir a Pablo Picasso, colaboraram na disseminação da imagem da mulher como um
objeto para a observação e o prazer. Suzanne Valadon foi uma das primeiras
pintoras a subverter essa ideia. Ao dedicar-se ao nu, a francesa rejeitou a
noção do corpo feminino como uma superfície controlada pelo olhar masculino.
Ela explorou os gestos desajeitados das mulheres, que apareciam quase sempre em
situações cotidianas. Sua obra La Chambre Bleue (O Quarto Azul, 1923), que
poderá ser vista no CCBB, é uma releitura de Vênus e o Tocador de Alaúde,
assinada por Ticiano no século 16. Enquanto o italiano mostrava uma mulher nua,
observada por um homem, Suzanne retrata uma figura feminina forte, vestida, que
fuma e lê livros. Frida Kahlo também alterou os padrões até então estabelecidos
na representação do gênero feminino. Na primeira individual da mexicana em Nova
York, em 1983, um especialista avaliou suas pinturas como mais “obstétricas do
que estéticas”. A reprovação se justifica pelo espanto que suas telas, narrando
experiências tão intensas quanto um aborto, causavam na época. Para Frida, a
arte era uma maneira de dialogar com sua realidade íntima e os quadros explicitavam
a dualidade entre sua imagem exterior, reinventada por enfeites e ornamentos, e
a interior, marcada pelo sofrimento. Em La Columna Rota (A Coluna Quebrada,
1944), um dos autorretratos mais famosos de Frida, a pintora se mostra com a
coluna mutilada e o corpo coberto de pregos.
Essas e outras questões
referentes à representação da mulher encontraram expoentes radicais algumas
décadas adiante. Em 1968, uma mulher de cabelos emaranhados, vestida com uma
jaqueta de couro agarrada e uma calça com um recorte triangular entre as
pernas, deixando visíveis os pelos pubianos, entrou em um cinema pornô e
circulou entre as fileiras repletas de homens. Na performanceAction Pants:
Genital Panic (Calças em Ação: Pânico Genital), Valie Export fez os
espectadores confrontarem a realidade com as imagens exibidas na tela. Há uma
filmagem, no mesmo ano, em que a artista aparece vestindo uma caixa de papelão
com dois buracos para os seios. Ao seu lado, um homem segura um megafone e
convida os transeuntes a tocá-la. Valie subverte o fetichismo que envolve o
corpo feminino e transforma os homens em objeto. Como ela, muitas mulheres
recorreram a vídeos e performances para demonstrar como sua experiência foi
suprimida e marginalizada na cultura ocidental. O fim dos anos 60 e o início
dos 70 assistiram à eclosão de vários trabalhos de cunho feminista. A escultora
franco-americana Louise Bourgeois participou ativamente de protestos. Na
exposição do CCBB, poderão ser vistas quatro obras de sua autoria, datadas de
1949 e 1989.
Essas discussões, olhadas
retrospectivamente, parecem ter pouco eco na realidade brasileira. O contexto
do país era diverso daquele que possibilitou a organização de movimentos
artísticos feministas nos Estados Unidos. A ditadura militar que se instaurou
em 1964, por exemplo, exigia discussões mais imediatas, fazendo com que as
temáticas relativas às mulheres fossem abordadas apenas pela tangente. “Podemos
ser feministas sem explicitar nenhum assunto específico do território feminino.
Daí várias artistas fazerem trabalhos contundentes sobre a violência sem
mostrar imagens consideradas violentas”, argumenta a mineira Rosângela Rennó.
Atualmente, o reconhecimento de
artistas mulheres faz os debates sobre gênero na arte soarem ultrapassados.
Menos de um quarto dos expoentes nas duas últimas bienais em São Paulo, no
entanto, era do sexo feminino. Em 2011, mais de duas décadas após o primeiro
levantamento, o coletivo Guerrilla Girls decidiu realizar uma nova contagem das
obras do Metropolitan Museum. Deparou-se com um dado surpreendente: diminuíram
tanto o número de mulheres nas seções de arte moderna e contemporânea (de 5%
para 4%) quanto o número de nus femininos (de 85% para 76%). “Será esse o
progresso? Menos artistas mulheres e mais nudez masculina? Adivinhe se podemos
guardar nossas máscaras?”, declararam as ativistas em uma entrevista no ano
passado. Talvez a exposição, que aterrissa neste mês no Brasil, levante mais
questões do que se poderia imaginar.
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