quinta-feira, 27 de junho de 2013

Mulheres ainda são minoria na Arte?


Com trabalhos de Frida Kahlo, Nan Goldin, Louise Bourgeois, Lygia Pape e outras 61 artistas, exposição no Rio de Janeiro reacende a questão: mulheres ainda são minoria na arte?


Por volta de 1880, todas as quintas-feiras à noite, um grupo célebre de amigos se reunia no Café Guerbois, em Paris, para discutir os rumos que a arte deveria tomar. Era o ponto de encontro de Auguste Renoir, Edgar Degas, Claude Monet e outros tantos. Os artistas ali presentes possuíam ao menos duas características em comum: queriam discutir os caminhos que enxergavam para seu ofício e pertenciam, todos, ao sexo masculino. Ainda que o impressionismo tenha sido o primeiro movimento artístico com integrantes mulheres e existam evidências de que a produção de Mary Cassatt e Berthe Morisot não fosse desvalorizada pelos colegas, as pintoras não eram bem-vindas nos espaços públicos de discussão. Considerava-se a vida noturna de Paris um território masculino e só se abriam exceções para aquelas que tinham o objetivo de servir ou entreter os homens. “Considero escritoras e políticas uma aberração, um bezerro de cinco pernas”, disse Renoir. “A mulher artista é ridícula, mas sou a favor das cantoras e das dançarinas.”
No século 19, não era só em Paris que as mulheres causavam desconforto quando saíam da esfera privada para a pública. A mostra The Centennial Exposition, realizada na Filadélfia em 1876, destinou um pavilhão às artistas. De forma eclética, a curadoria reuniu esculturas, bordados e pinturas, produzidos por profissionais e amadoras; fez do gênero o critério para a disposição dos trabalhos. A opção foi contestada: feministas radicais recusaram-se a participar, avaliando a escolha como uma forma de institucionalizar a diferença. A exposição se ¬tornou, ao mesmo tempo, um símbolo da luta por direitos iguais e uma evidência do status diferenciado que a mulher ocupava.

Quase um século e meio depois, o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro sedia uma mostra dedicada exclusivamente ao gênero feminino e retoma, de certa forma, a mesma questão. Elles: Mulheres Artistas na Coleção do Centro Georges Pompidou, cuja abertura será dia 24 de maio, traz ao país 120 trabalhos de 65 expoentes, datados de 1907 a 2010. Estarão reunidas obras de criadoras pioneiras, como Frida Kahlo e Louise Bourgeois, e contemporâneas, como Valie Export, Nan Goldin e Sophie Calle. A elas, juntam-se brasileiras como Lygia Pape, Anna Maria Maiolino e Anna Bella Geiger. Quando exibida na capital francesa, em 2010, a coletiva foi acompanhada de debates e entrevistas que discutiam o recorte proposto pelo museu parisiense. “Há sentido em segregar o trabalho das artistas? Existe um componente feminista na mostra? Acho que devem ser questões abertas e a melhor parte da exposição é sentir que as perguntas não foram respondidas”, diz a crítica de arte Amelia Jones, em um vídeo publicado no site da instituição.
“Achei a exposição absolutamente formidável. Por que não a organizaram antes?”, indaga a historiadora Linda Nochlin, em outro depoimento. A estudiosa que vibra com a iniciativa do Pompidou é autora de um dos primeiros artigos a questionar a participação da mulher na história da arte, publicado no início dos anos 70. Em Why Have There Been No Great Women Artists? (Por Que Não Tem Havido Grandes Mulheres Artistas?), Linda trouxe para o centro das discussões uma questão até então ignorada: qual o motivo de não existirem artistas do sexo feminino equiparadas a Leonardo da Vinci e Michelangelo?

Explosão
No inventário da coleção real espanhola, datado de 1582, a italiana Sofonisba Anguissola, pintora da corte por cerca de 20 anos, é mencionada como uma excelente retratista, acima de todos os pintores de sua época. Primeira artista de que se tem notícia a adquirir fama, ela concebeu trabalhos confundidos com os de Ticiano e Leonardo da Vinci. Sua atuação, no entanto, foi prejudicada pelo surgimento de uma estética que valorizava a relação entre o material e o celestial. Essa dualidade encontrou expressão máxima nas representações do nu feminino. Por ser mulher, Sofonisba jamais poderia realizar tais obras sem violar o código social do período.

Na mesma época, a fama de ¬Marietta Robusti como exímia retratista se espalhou pelas cortes da Áustria e da Espanha. A possibilidade de a veneziana tornar-se pintora oficial de um dos reinos foi rapidamente vetada por seu pai, o pintor Tintoretto. Retrato de um Homem Velho com Garoto (c. 1585) é o único quadro que a maioria dos estudiosos atribui a Marietta. Durante muito tempo, a obra figurou entre os melhores trabalhos de Tintoretto. Somente em 1920 as iniciais de sua filha foram descobertas.
Como ainda acontece hoje, quanto maior a fama do autor, maior o preço atingido pelas obras de arte. Por esse motivo, atribuíam-se a colegas homens mais conhecidos muitos trabalhos produzidos por mulheres. Em 1922, por exemplo, o Metropolitan Museum, em Nova York, adquiriu a tela Charlotte du Val d’Ognes acreditando tratar-se de um Jacques-Louis David. Descobriu-se, em 1951, que a obra tinha sido realizada por uma das alunas do pintor francês (sua identidade ainda é objeto de discussão). O Metropolitan só fez a correção 26 anos depois. A pintura, enaltecida inicialmente pelo próprio museu por expressar “um austero gosto do tempo”, sofreu uma depreciação quando a autoria de David foi contestada. Rapidamente, os historiadores passaram a enxergar no quadro um “tratamento gentil” e o “espírito feminino”.
Até o fim do século 19, o acesso à instrução artística era marcado pela desigualdade entre os sexos. A admissão de mulheres na Escola de Belas-Artes na França, em 1887, foi antecedida por uma década de intensos debates. Os refratários tinham como argumento o desconfortável confronto das artistas com nus masculinos nas classes de modelo vivo. Uma comissão para discutir o tema foi estabelecida na própria academia. Numa das reuniões, a participante Virginie Demont-Breton se surpreendeu com um grito do arquiteto Charles Garnier a respeito de homens e mulheres estudarem debaixo do mesmo teto: “Isso produzirá uma explosão que irá destruir por completo a arte”.

Gorila
No início dos anos 80, uma série de pôsteres circulava pela cidade de Nova York. Um deles trazia em letras garrafais o título As Vantagens de Ser uma Artista Mulher. E vinha acompanhado de uma série de respostas: ser incluída em versões revisadas da história da arte, trabalhar sem a pressão do sucesso, não ter de passar pelo embaraço de ser chamada de gênio e assim por diante. As intervenções eram assinadas pelo Guerrilla Girls, um grupo anônimo de artistas que até hoje se esconde por trás de máscaras de gorila. O ¬coletivo surgiu para protestar contra um conjunto de exposições na Europa e nos Estados Unidos que insistia em exibir, na sua maioria, trabalhos assinados por homens. O objetivo era provar, por estatísticas, a conduta misógina dos museus. Um dos trabalhos mais famosos do Guerrilla poderá ser conferido na capital fluminense: num cartaz de 1989, A Grande Odalisca, do pintor francês Jean-Auguste Dominique Ingres, tem seu rosto substituído pelo de uma macaca. Abaixo da colagem há uma inscrição: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Metropolitan Museum? Menos de 5% dos artistas nas seções de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.
Os pintores modernistas, de Renoir a Pablo Picasso, colaboraram na disseminação da imagem da mulher como um objeto para a observação e o prazer. Suzanne Valadon foi uma das primeiras pintoras a subverter essa ideia. Ao dedicar-se ao nu, a francesa rejeitou a noção do corpo feminino como uma superfície controlada pelo olhar masculino. Ela explorou os gestos desajeitados das mulheres, que apareciam quase sempre em situações cotidianas. Sua obra La Chambre Bleue (O Quarto Azul, 1923), que poderá ser vista no CCBB, é uma releitura de Vênus e o Tocador de Alaúde, assinada por Ticiano no século 16. Enquanto o italiano mostrava uma mulher nua, observada por um homem, Suzanne retrata uma figura feminina forte, vestida, que fuma e lê livros. Frida Kahlo também alterou os padrões até então estabelecidos na representação do gênero feminino. Na primeira individual da mexicana em Nova York, em 1983, um especialista avaliou suas pinturas como mais “obstétricas do que estéticas”. A reprovação se justifica pelo espanto que suas telas, narrando experiências tão intensas quanto um aborto, causavam na época. Para Frida, a arte era uma maneira de dialogar com sua realidade íntima e os quadros explicitavam a dualidade entre sua imagem exterior, reinventada por enfeites e ornamentos, e a interior, marcada pelo sofrimento. Em La Columna Rota (A Coluna Quebrada, 1944), um dos autorretratos mais famosos de Frida, a pintora se mostra com a coluna mutilada e o corpo coberto de pregos.

Essas e outras questões referentes à representação da mulher encontraram expoentes radicais algumas décadas adiante. Em 1968, uma mulher de cabelos emaranhados, vestida com uma jaqueta de couro agarrada e uma calça com um recorte triangular entre as pernas, deixando visíveis os pelos pubianos, entrou em um cinema pornô e circulou entre as fileiras repletas de homens. Na performanceAction Pants: Genital Panic (Calças em Ação: Pânico Genital), Valie Export fez os espectadores confrontarem a realidade com as imagens exibidas na tela. Há uma filmagem, no mesmo ano, em que a artista aparece vestindo uma caixa de papelão com dois buracos para os seios. Ao seu lado, um homem segura um megafone e convida os transeuntes a tocá-la. Valie subverte o fetichismo que envolve o corpo feminino e transforma os homens em objeto. Como ela, muitas mulheres recorreram a vídeos e performances para demonstrar como sua experiência foi suprimida e marginalizada na cultura ocidental. O fim dos anos 60 e o início dos 70 assistiram à eclosão de vários trabalhos de cunho feminista. A escultora franco-americana Louise Bourgeois participou ativamente de protestos. Na exposição do CCBB, poderão ser vistas quatro obras de sua autoria, datadas de 1949 e 1989.
Essas discussões, olhadas retrospectivamente, parecem ter pouco eco na realidade brasileira. O contexto do país era diverso daquele que possibilitou a organização de movimentos artísticos feministas nos Estados Unidos. A ditadura militar que se instaurou em 1964, por exemplo, exigia discussões mais imediatas, fazendo com que as temáticas relativas às mulheres fossem abordadas apenas pela tangente. “Podemos ser feministas sem explicitar nenhum assunto específico do território feminino. Daí várias artistas fazerem trabalhos contundentes sobre a violência sem mostrar imagens consideradas violentas”, argumenta a mineira Rosângela Rennó.

Atualmente, o reconhecimento de artistas mulheres faz os debates sobre gênero na arte soarem ultrapassados. Menos de um quarto dos expoentes nas duas últimas bienais em São Paulo, no entanto, era do sexo feminino. Em 2011, mais de duas décadas após o primeiro levantamento, o coletivo Guerrilla Girls decidiu realizar uma nova contagem das obras do Metropolitan Museum. Deparou-se com um dado surpreendente: diminuíram tanto o número de mulheres nas seções de arte moderna e contemporânea (de 5% para 4%) quanto o número de nus femininos (de 85% para 76%). “Será esse o progresso? Menos artistas mulheres e mais nudez masculina? Adivinhe se podemos guardar nossas máscaras?”, declararam as ativistas em uma entrevista no ano passado. Talvez a exposição, que aterrissa neste mês no Brasil, levante mais questões do que se poderia imaginar.




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