sexta-feira, 1 de março de 2013

Vale-cultura poderá ser gasto com TV por assinatura, diz ministra


     Marta Suplicy surpreende produtores e editores ao incluir televisão entre os bens culturais que poderão ser comprados com benefício

Na semana em que a presidente Dilma Rousseff deve assinar o decreto que regulamenta o vale-cultura — benefício de R$ 50 que poderá ser dado pelas empresas brasileiras aos trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos para consumo de atividades culturais realizadas em todo o território nacional —, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, surpreende o setor com uma novidade: o dinheiro do vale poderá ser usado também para o pagamento de mensalidades de TV por assinatura.
Em entrevista ao GLOBO, Marta explica que a regulamentação que Dilma deve assinar hoje em Brasília será um “documento bem genérico” e que o detalhamento operacional relativo ao uso do benefício só virá mesmo nos próximos meses, por meio de portarias que um grupo de trabalho criado no Ministério da Cultura (MinC) redigirá até junho, quando o benefício deve entrar realmente em vigor.
— Trata-se de um produto novo, e nós não queremos engessá-lo logo de cara. Fazendo esse detalhamento por portarias, podemos ir corrigindo pouco a pouco as regras estabelecidas para seu uso — explicou a ministra. — Mas não há dúvidas de que esse benefício só poderá ser usado em estabelecimentos majoritariamente culturais. Então, ele vai funcionar em cinemas, teatros, casas de shows, museus, livrarias, para a compra de revistas e periódicos e para a assinatura de TV a cabo.
Encontros em três cidades
No site oficial do vale-cultura, nascido de um projeto de lei que tramitou no Congresso durante três anos e que foi sancionado pela presidente Dilma em 27 de dezembro do ano passado, informa-se que o benefício de R$ 50 é “parecido ao vale-transporte ou ao vale-refeição”, que “o trabalhador receberá um cartão magnético complementar ao salário” e que ele “poderá utilizar (esse cartão) para entrar em teatros e cinemas, comprar livros e CDs e consumir outros produtos culturais”. A aquisição de pacotes de TV por assinatura não aparece na lista e, até agora, não havia sido mencionada publicamente por nenhum integrante do governo.
Atualmente, Net e Sky, por exemplo, oferecem no Rio de Janeiro e em São Paulo pacotes de TV com cerca de 80 canais por valores que oscilam entre R$ 39,90 e R$ 59,90. Com as portarias que o MinC publicará até junho permitindo que esses valores sejam quitados ou mesmo complementados usando o benefício do vale-cultura, é bem possível que o número de assinantes de TV aumente e a inadimplência diminua.
Para os próximos dias, a ministra tem uma série de encontros com empresários, trabalhadores e produtores culturais. Vai a Brasília, Curitiba e Belo Horizonte. A ideia, diz ela, é colher informações que ajudem a operacionalizar o vale-cultura. Enquanto Marta faz esse périplo, o MinC trabalha no credenciamento de empresas interessadas em operar os futuros cartões pré-pagos.
— Já estamos conversando com operadoras que têm expertise nisso, mas também queremos estimular novos empreendedores, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste — diz a ministra. — A ideia é gerar emprego e credenciar todos que decidirem se habilitar.
Informados sobre a posição da ministra, representantes de setores da cultura se mostraram surpresos.
— Acho essa possibilidade de uso muito ruim — avalia Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR). — O vale-cultura foi pensado para dar ao cidadão acesso a instrumentos culturais dos quais ele estava excluído. A TV não é um deles.
Sônia Jardim, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel), segue a mesma linha:
— Se a TV por assinatura for uma alternativa de uso para o vale-cultura, não vai sobrar dinheiro para nenhum outro setor. Pense bem: as TVs a cabo trabalham com mensalidade. O cidadão que assina um pacote de canais contando com o dinheiro do vale-cultura se compromete imediatamente a pagar aquele mesmo valor ao longo de muitos meses. Não vai dispor de dinheiro para nenhum outro bem cultural. Menos ainda para o livro.
Sônia e Barata reconhecem que para o público-alvo do vale-cultura — trabalhadores quem ganham até R$ 3.110 (em valores de hoje) — a TV por assinatura é “um grande chamariz”. Lembram ainda que a expansão das operadoras de TV caminha na direção da conquista desse mesmo grupo.
— Espero que a ministra fique muito atenta, que escute as ponderações da cultura nacional ao redigir as portarias que vão fixar os detalhes operacionais do vale-cultura — diz Barata.
— Entendo que Marta Suplicy esteja muito preocupada em mostrar que não cabe ao governo fazer censura quanto ao uso desse benefício, mas o vale-cultura tem em seu DNA a ideia de acesso a setores de que, em condições normais, alguns brasileiros não poderiam usufruir — ressalta Sônia.
De Nova York, a produtora cultural Paula Lavigne, responsável por shows de Caetano Veloso, pondera que o movimento de Marta talvez seja mesmo fruto de uma necessidade política.
— Se foi preciso que a ministra abrisse essa concessão, o.k. É válido. Mas é uma pena. Eu tinha romantizado um pouco mais (o vale-cultura).
Em miúdos, editores e produtores temem que boa parte dos R$ 11,3 bilhões que o vale-cultura poderia injetar em seus projetos nos próximos anos vá parar nas operadoras de TV por assinatura e esvazie o prometido aumento de poder de fogo do restante da indústria cultural.
A Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec), por sua vez, destaca em nota que “acredita que a escolha individual faz parte do processo de formação cultural e que a iniciativa (do vale-cultura) tende a estimular o consumo das artes e cultura de maneira geral”.
A Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA) informou que não sabia dessa posição de Marta. Mas comemorou:
— Trata-se de uma boa notícia. Só 27% das residências do Brasil têm TV paga, um dos índices mais baixos da América Latina — diz Oscar Simões, presidente da ABTA. — Esse uso (do vale) vai atender a uma parcela significativa da população que tem a TV como única fonte de informação e entretenimento.
Para Simões, a TV por assinatura tem uma oferta ampla e serve como uma verdadeira “biblioteca digital”.
— Acho o cinema fascinante, insubstituível, mas e as pessoas que não têm cinema em suas cidades? Isso é para elas — diz.




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