segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Disputa por Portinari aquece debate sobre direitos na arte




RIO - No fim do ano passado, um oficial de Justiça, representando João Candido Portinari, filho do pintor brasileiro morto em 1962, foi a um leilão de arte promovido pelo escritório Soraia Cals e pelo leiloeiro Evandro Carneiro num edifício na Avenida Atlântica, em Copacabana. Carregava uma liminar que obrigava o leiloeiro a depositar em juízo 5% da cifra obtida nas possíveis vendas das quatro obras de Portinari em negociação naquela noite — entre elas, a pintura "São Francisco misericordioso" (1941), avaliada em R$ 4 milhões.
Do percentual pleiteado pela família de Portinari seria extraído o chamado direito de sequência, que garante ao artista ou a seu herdeiro uma fatia sobre a valorização da obra a cada revenda.Foi a primeira vez no país que se usou uma liminar para garantir o pagamento desse direito — uma questão que paira sobre a comercialização de obras de arte no Brasil e que, agora, é alvo de revisão (e intensa discussão) por conta do novo projeto de lei de direito autoral enviado pelo Ministério da Cultura (MinC) à Casa Civil no fim de 2011.
— Mandei cartas e e-mails sobre o direito de sequência e esperei uma resposta até o segundo dia do leilão. Como não obtive retorno, fui à última instância — conta ao GLOBO Maria Edina Portinari, mulher de João Candido e advogada da família para questões de direito autoral. — Reconheço que é uma forma de garantir na marra esse direito, dificilmente pago.
A marchand Soraia Cals, que realiza leilões públicos no Rio há mais de 20 anos, nega má-fé. Diz que recebeu um e-mail um dia antes do leilão informando que o direito de sequência de Portinari seria "devidamente exercido" e afirma que não teve tempo de se pronunciar.
— A liminar veio logo em seguida — diz. — Mas ninguém nunca pagou essa porcentagem. A primeira pessoa que está cobrando é ela (Maria Portinari). Essa lei não é simpática ao mercado, toma parte do patrimônio do colecionador e vira uma espécie de pensão vitalícia para o artista ou para seu herdeiro. Baseia-se numa lei do século XIX que protegia artistas e familiares que viviam na miséria, enquanto colecionadores e marchands ficavam ricos com suas obras. Não é o caso contemporâneo.
 ‘Artistas não se interessam’
Segundo Soraia, existe dificuldade de se obterem dados precisos para calcular a valorização de uma obra e, por isso, a praxe no mercado nacional é o não pagamento. De qualquer forma, atendendo à liminar, ela depositou em juízo R$ 450 por conta da venda do desenho "Estudo para rabino" (1955), arrematado na ocasião por R$ 9 mil.
O leiloeiro Evandro Carneiro, réu com Soraia na ação, estima que se trate do único caso de pagamento do direito de sequência no país.
— A lei sempre se mostrou inoperante. Os principais interessados seriam os artistas, e eles nunca se interessaram, só seus herdeiros. É uma lei anacrônica e assistencialista — critica.
O não pagamento parece ser mesmo praxe no mercado. Nomes como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes, duas das mais valorizadas artistas brasileiras, contam não ter recebido percentual algum por suas revendas. Varejão viu seu trabalho "Parede com incisões a la Fontana II" ser leiloado por US$ 1,7 milhão, valor mais alto pago por uma obra de um artista brasileiro vivo. Em entrevista ao GLOBO, em agosto passado, a artista disse que o assunto não lhe "pertencia":
— Por que não falam com o colecionador que ganhou uma fortuna com a obra? Para ele deve ser um assunto interessante, gostaria de saber o que ele vai fazer com o dinheiro. Ganhei US$ 17 mil quando a vendi em 2002 — afirmou, na ocasião.
Desde 1998, a lei 9.610 estabelece regras para o exercício do direito autoral no Brasil. Em seu artigo 38, ela prevê que o autor tem o direito de receber "no mínimo 5% sobre o aumento do preço eventualmente verificável em cada revenda da obra". É uma herança do "droit de suite" francês e, na década de 1970, no Brasil, chegava a estabelecer o percentual de 20% para artistas e herdeiros. Mesmo agora, com a porcentagem em 5%, o problema, segundo marchands e colecionadores, é que os artistas não emitiam recibos de suas vendas, o que impossibilita o cálculo da valorização.
— Existe uma preguiça na Justiça e no mercado brasileiros de apurar os números de vendas anteriores. Os resultados dos leilões são registrados oficialmente. Basta um esforcinho para localizá-los. No caso de vendas particulares, o problema é outro: por indicação de advogados da área tributária, colecionadores costumam declarar suas obras de arte em lotes. No imposto de renda não aparece o valor delas separadamente, impedindo o cálculo da mais-valia — diz Maria Portinari.

Jones Bergamin, que desde 1985 é diretor de uma das principais casas de leilões do país, a Bolsa de Arte do Rio de Janeiro, rebate:
— Quem está requerendo o percentual deve saber informar qual é o valor original da obra. Por que querem mudar (a lei)? Porque, como está, não conseguem provar por quanto venderam para poder cobrar sobre a mais-valia.
As discussões em torno do assunto devem tomar o Congresso nos próximos meses, quando os parlamentares votarão a nova lei de direito autoral. O texto propõe que o direito de sequência seja uma porcentagem de 3% a 5% sobre o valor absoluto de uma revenda — e não mais sobre a valorização da obra.

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