Um estudante foi agredido por um policial militar, nesta segunda (9), no campus do Butantã da Universidade de São Paulo. O rapaz não quis mostrar a documentação estudantil e o policial chegou a sacar seu revólver, o que não deveria ser a abordagem padrão de um funcionário público treinado para lidar com pessoas e situações-limite. Enquanto isso, na Cracolândia, surgem denúncias de tortura contra dependentes químicos, medicados com balas de borracha e tratados contra o vício com bombas de efeito moral.
Mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com a violência como principal instrumento de ação policial. E uma coisa está diretamente relacionada a outra. Durante os anos de chumbo, o regime dos verde-oliva cometeram crimes contra a humanidade que a esvaziada Comissão da Verdade, criada pelo governo Dilma, deve agora remexer para reestabelecer o que realmente ocorreu naquele tempo. Vai ter algum efeito, mas não conseguirá ir a fundo, como deveria. E não foi organizada para punir e sim para resgatar os fatos. Punições que seriam didáticas para o país não ocorrerão.
Não estou esquecendo que existe uma Lei da Anistia, que está em vigor, e que o Supremo Tribunal Federal (infelizmente) decidiu por mantê-la quando questionado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos. A discussão aqui não é legal, ou seja, não é um debate sobre a mudança da lei e sim sobre a percepção coletiva sobre a impunidade da violência estatal, servindo a si mesmo e a grupos sociais controlados por ele.
Ao contrário de outros países, como a Argentina, o Brasil não conseguiu tratar suas feridas para que cicatrizassem. Apenas as tapou com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos seus quadros que usar da violência, torturar e matar não são coisas aceitáveis. E com a anuência da Justiça que, através do seu silêncio, manteve aqueles crimes impunes. E, ei, para o pessoal que só aciona o seu Tico-e-Teco bissextamente: estou falando de violência de quem deve zelar pela integridade da população.
Enquanto não acertarmos as contas com o nosso passado, não teremos capacidade de entender qual foi a herança deixada por ele – na qual estamos afundados até o pescoço e nos define. Foram-se as garrafas, ficaram-se os rótulos. A ditadura se foi, sua influência permanece. Não somos um país que respeita os direitos humanos e não há perspectivas para que isso passe a acontecer pois, acima de tudo, falta entendimento e, consequentemente, apoio, da própria população.
O impacto desse não-apoio se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A ponto de ser banalizada em filmes como Tropa de Elite, em que parte de nós torceu para os mocinhos que usavam o mesmo tipo de método dos bandidos no afã de arrancar a “verdade”.
A justificativa é a mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou nas prisões no Iraque e em Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra. Guerra contra a violência, guerra contra as drogas, guerra contra inimigos externos. Ninguém explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás.
Não é de estranhar, portanto, que boa parte da sociedade que agora apóia ações truculentas da polícia militar na USP ou na Cracolândia também tenha se calado diante do processo de defenestração pública de propostas do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, levado a cabo por setores descontentes em universalizar direitos.
Não querem discutir (atenção, discutir, não empurrar goela abaixo) propostas para garantir direitos pela mesma razão que não se importam se algum inocente foi tratado de forma injusta pelo Estado. São seguidores da doutrina: “se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem”. E se não se importam com inocentes, imagine então com quem é culpado. Para eles, é pena de morte e depois derrubar e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de esterilizar a mãe para que não gere outro meliante.
Enfim, a verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje. E muitos de nós não suportarão isso. Melhor é prender ou mandar para longe aqueles que, através de suas críticas ou de sua existência, nos fazem lembrar disso.
Leonardo Sakamoto
É jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
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