O romance 'O Casamento', de Nelson Rodrigues, chega ao palco
com a mesma virulência das suas peças
Casamento pede festa mesmo que fingida. Ao final do
espetáculo, quando todo o elenco se junta no grande palco do TUCA em celebração
emoldurada pelo cenário de André Cortez, expressivo em sua insinuação de
labirinto, a representação ganha a monumentalidade estranha dos desastres. É
uma festa de arromba, embora as pessoas na sala de jantar estejam mais ocupadas
em nascer e morrer. O tema sempre atraiu o dramaturgo Nelson Rodrigues e está
no cerne de suas peças. Mas um dia, na sua atividade paralela de folhetinista
desbragado sob o pseudônimo de Suzana Flag, resolveu rasgar a fantasia e com o
próprio nome jogar no papel todo exagero naturalista - e assim nasceu o romance
O Casamento. A obra causou a polêmica esperada e foi proibida.
O programa atual da peça dá ao acontecido um tom vitimista,
ao mesmo tempo que chama Castelo Branco de presidente e não diz qual Ministro
da Justiça assinou a proibição. Castelo era chefe do regime militar imposto ao
país e teve três ministros da justiça. Os dois primeiros, políticos liberais,
demitiram-se logo do cargo (Milton Campos e Mem de Sá), sendo o jurista de
renome Carlos Medeiros quem se deu ao trabalho ideológico
"moralizante" de impedir o livro. A arbitrariedade não melhora uma
obra. A democracia e o romance voltaram e ninguém mais pensa no ilustre censor.
Reparos e elogios ao texto são assuntos de arte e cultura. O Casamento tem o
apelo das frases de efeito, imagens delirantes, ênfase aberta no grotesco e no
caricato divertido, opostos que Nelson Rodrigues manipula com notável maestria,
só que aqui não isentos de derrapadas no puro e simples mau gosto.
Como sempre, temos uma família impecável até que tudo venha
abaixo em incestos e outras pulsões sexuais inesperadas e arroubos morais que
são puro verniz. A mocinha e o noivo estão distantes das figurinhas que
enfeitam o bolo e os filmes felizes. Canalhas fundamentais gotejam em todos os
cantos e uma vingança avassaladora será perpetrada pelo filho surrado metódica
e sadicamente pelo pai que o descobre homossexual. Enfim, um bando de
ensandecidos e patéticos ostentando aparências castas entre atos tenebrosos.
O espetáculo de Joahana Albuquerque, diretora e adaptadora
do original, é esforço e risco de elevar a outro patamar o que é subliteratura
deliberada. Com um elenco homogêneo que reúne talentos comprovados e novos
intérpretes, a representação mantém quase sempre a tensão que capta o público.
Os monólogos e diálogos falsamente morais, as confissões improváveis e os
óbvios ululantes explodem em cascatas. A montagem tem instantes de sexo
semi-explícito que só podem ser vistos como experiência pouco feliz de lidar
com a pornografia ao colocar a nu o que Nelson Rodrigues insinua. Cenas feias e
destituídas de consistência dramática. Registre-se a brincadeira, mas se fosse
suprimida haveria ganho estético e de tempo.
A interpretação de Renato Borghi tem a força de um talento
natural para a insolência embora ele saiba dosá-la com o amargo e o quase
trágico. Evita a linearidade debochada de Élcio Nogueira Seixas, presença
exuberante mas com a tentação do maneirismo autocomplacente. Élcio tem mais
recursos como ator. A encenação é mais favorável às intervenções masculinas,
mesmo que pontuais (o monsenhor de Mauricio de Barros). Daniel Alvim assegura
dois papéis chaves que provavelmente renderiam melhor sem a violência pitbull
de um e a afetação ostensiva do outro. Há perda de verossimilhança. As mulheres
deste casamento estão estranha ou sintomaticamente secundárias no palco, à
exceção convincente de Regina França. O conjunto de tipos e situações, no
entanto, tem coerência mínima, ocasião em que Joahana Albuquerque demonstra
controle do projeto artístico que reúne os grupos Bendita Trupe e Teatro
Promíscuo, nomes tão opostos que parecem mais uma irreverência de Nelson
Rodrigues.
O Estado de São Paulo
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