Dos grandes
nomes que despontaram nos anos 1960 o de Chico Buarque talvez tenha sido o que
mais fiel se manteve àquilo que, nessa mesma época, passou a ser denominado
como MPB. Isso não quer dizer necessariamente que Chico tenha se tornado o
guardião dessa entidade, mas apenas que o seu foco permaneceu a maior parte do
tempo nela concentrado. Numa entrevista, chegou a dizer que enquanto Caetano e
Gil se reuniam para ouvir os Beatles, ele ia com Tom Jobim ao centro da cidade
escolher um piano para comprar. Sua abertura para os influxos sonoros da
cultura mundial, do emergente universo pop, certamente foi muito mais comedida,
criteriosa e desconfiada do que aquela dos tropicalistas. Nesse sentido, Chico
aproxima-se mais de Paulinho da Viola. Mas Paulinho da Viola vincula-se, antes
de tudo, à grande tradição do samba – uma tradição que o guarda-chuva da MPB
tomou de empréstimo, como tantas outras, reconhecendo nela uma espécie de
fonte, mas que jamais foi totalmente a ele integrada.
Estamos
demasiadamente acostumados a tomar o samba como raiz, como ponto de partida
para elaborações ditas mais modernas. Quando se fala de bossa nova, contudo, o
assunto costuma girar em torno das influências. E, no entanto, Paulinho da
Viola, tal como o conhecemos, dificilmente seria possível sem João Gilberto. O
caráter esquivo de muitas das melodias do estilo maduro de Paulinho da Viola,
seu repertório de indefinições e, sobretudo, a capacidade de criar suspensões
temporais no interior delas – suas pausas de mil compassos para ver as meninas
– devem muito à Bossa Nova. Mas pouco ou nada se fala a respeito disso. Porque
de certo modo é preciso deixar Paulinho da Viola na posição de representante
zeloso, delicado e cordial da grande tradição do samba. Como se o samba tivesse
uma vida em paralelo, sublimada, subtraída à própria história, e Paulinho fosse
um filho puro, um desdobramento natural dessa nobre linhagem. Dizer que sua
música foi influenciada pelo reprocessamento que a classe média fez do samba é,
talvez, tirar dele um pouco da nobreza, desse lugar algo idealizado no qual foi
posto.
Nuno Ramos
chamou a atenção para o caráter extemporâneo da obra de Paulinho – obra que
resistiu às solicitações do presente para refugiar-se num tempo próprio,
recuado, o tempo expandido da “imensidão íntima”. Mesmo a obra prima da canção
política que é “Sinal Fechado” parece ter sido um acidente em sua trajetória,
um casual e efêmero reencontro de Paulinho com a urgência do tempo presente. A
letra nada mais é do que a narração desse momento. Esse afastamento (ou
descaso) do presente imediato e a demarcação de um território paralelo têm sido
um dos locais por excelência de cultivo da música popular brasileira – local
resguardado, sobretudo, pela teimosia intransigente de João Gilberto. Na
verdade, a bossa nova não surgiu exatamente nesse lugar, mas ali foi posta pela
brutal mudança de ventos trazida pelos anos 1960. Paulinho certamente se
beneficiou disso, mas criou (ou criaram para ele) a ilusão de que sua música
derivava exclusivamente de fontes mais puras. Acho que vem daí um pouco de sua
relação desencontrada com a MPB – Paulinho era o filho do samba do morro, e não
de Jobim e de João Gilberto.
De fato,
nada foi mais indicativo dessa proximidade e, ao mesmo tempo, dessa distância
de Paulinho da Viola em relação à MPB do que o mal-estar ocorrido no fatídico
episódio do réveillon de Copacabana, quando se homenageou Tom Jobim. Ali, mais
do que nunca, ficou clara a posição ambígua de Paulinho da Viola, entre ser e
não ser parte da linha de frente da MPB. A descoberta de que seu cachê havia
sido menor do que o das outras estrelas do evento – Chico, Caetano, Gil,
Milton, Bethânia e Gal – foi a prova a um só tempo eloquente e vulgar disso. A
prova de que o elo da MPB tornava-se cada vez mais frágil. Na hora da chuva,
percebeu-se que Paulinho tinha metade do corpo fora do guarda-chuva.
Na verdade,
o próprio guarda-chuva da MPB podia ser visto como a tentativa de unificar
simbolicamente as diferenças e contradições da sociedade brasileira. Parece que
muitas das figuras mais fascinantes e lendárias dessa música foram seres de
fronteira, verdadeiros navegantes sociais. A própria eleição do samba como
música por excelência do Brasil e o reconhecimento de que essa música era, em
sua base, o produto de uma ralé urbana, algo ociosa e marginalizada, em sua
maioria composta pelos descendentes de uma escravidão mal e tardiamente abolida
parecem ter fortalecido a ideia de uma integração nacional criada a partir da
aliança dos vários extratos sociais. Aliança que efetivamente aconteceu no
plano da música popular, de sua linguagem. E, acontecendo nesse plano, nada
mais normal do que essa aliança se desse sob o signo do afeto, da harmonia e da
conciliação de vozes. (Alguns biólogos consideram o surgimento da música como
“tecnologia de coesão social”, evolutivamente vantajosa, posto que permitia aos
primeiros grupos humanos permanecerem unidos). De fato, para a geração de Chico
e Caetano praticamente não havia diferença entre pensar a música popular e
pensar o Brasil – a música tornava-se um modelo, não apenas de revelação do que
já éramos, mas também de experimentação do que poderíamos ser.
Por uma
série de circunstâncias, a primeira maturidade da canção comercial urbana se
deu não apenas no mesmo momento de ampliação da indústria cultural e da
unificação do imaginário nacional via rádio – Rádio Nacional – mas também da
formulação de ideias mais generosas, singularizantes e afirmativas sobre os
destinos da nação. Já nos anos 1930, Noel Rosa estava preocupado com a
definição das “coisas nossas”; pouco depois, inspirado em Villa-Lobos, Ary
Barroso sinfonizou o samba transformando-o em monumental afirmação do ufanismo
da Era Vargas.
O que estou
querendo dizer é que desde muito cedo – desde sua primeira formatação como
linguagem maleável e dinâmica, urbana e moderna, coloquial e direta, já
significativamente deslocada da herança romântica do século XIX – a música
popular associou-se ao mito de um país unificado em torno de ideais de convívio
cordial, informalidade e mistura; a ideais de sedução, alegria e de uso intenso
e prazeroso do corpo. Isso ocorreu de tal modo que terminou por confundir-se
com esse mito. Mais do que portadora do mito-Brasil, a música popular tornou-se
ela própria uma instância não apenas difusora, mas também elaboradora desse
mito. Mito que está inscrito nas camadas mais profundas da linguagem, que se
faz sentir não apenas intelectualmente, mas por meio da totalidade dos
sentidos. Mito capaz de injetar significado nos ossos.
Com a bossa
nova, a crença na canção ganhou ainda mais intensidade, pois ela passou a ser o
veículo por excelência de afirmação cultural do país no exterior – um país
capaz de produzir símbolos de validade internacional por seu teor de
modernidade e ousadia singular, e não por meros exotismos. A partir de Jobim e
de João Gilberto percebeu-se o quanto essa linguagem podia ser maleável, o
quanto podia incorporar das informações de ponta da música popular mundial
conservando ainda assim a sua essência. Aquilo forneceu uma bela imagem
simbólica sobre as possibilidades do Brasil moderno, excitou a imaginação de
muitas gerações posteriores, e continua excitando. Como escreveu Lorenzo Mammì,
“depois de Tom Jobim e João Gilberto o desafio era demonstrar que a música
popular mais inovadora não era apenas ruptura, mas também prolongamento, ponto
de chegada de algo que o repertório anterior já prometera”. A partir dali,
compositores de classe média passaram a contrabandear livremente referências
das mais diversas – da literatura, da música erudita, do cinema, das artes
plásticas e também, obviamente, da música popular de outras matrizes – para o
campo consolidado da canção. E isso ganhou tal dimensão que a questão já não
era mais se a música popular resistiria ao julgamento culto e criterioso da
literatura ou da filosofia, mas que ela própria havia se tornado um critério de
avaliação, e não apenas das artes, mas da vida. Ou seja, uma lente, um
instrumento de entendimento do mundo. Que Jorge Ben, um filho de estivador do
cais do porto, tenha feito canções sobre São Tomás de Aquino, Cassius Marcellus
Clay e Zico; que Gil tenha especulado sobre religiões orientais de modo tão
livre, associando-as, no terreno da canção, a referências explicitamente
africanas; que Caetano conseguisse conciliar naturalmente no espaço de uma
única música ideias de Guimarães Rosa, Waldick Soriano e Freud; e que Chico
tenha trazido para o contexto da canção, sem soar pedante ou hermético,
referências da literatura clássica são apenas alguns exemplos possíveis do
alargamento de linguagem que a bossa nova iniciou. Tendo sido desde seu
nascimento um objeto de consumo, nos anos 1960 e 1970 a canção ganhou um
significado cultural que jamais tivera e que possivelmente jamais voltará a
ter. A vida pulsava ao som de canções.
No Brasil,
mais do que nunca, acreditou-se que a possibilidade de ter uma arte popular de
grande qualidade e pregnância social andava de mãos dadas com o horizonte de
uma modernização progressista, inclusiva e unificadora. Uma civilização da
canção. Com todas as contradições que isso implica, Chico é o principal
herdeiro desse mito. Por escolha ou por temperamento, talvez por crença,
manteve-se como poucos inteiramente embrenhado na linha da MPB. É como se a
trajetória de extrema depuração formal que seguiu fosse o resultado de um
paulatino processamento do conjunto de possibilidades estilísticas que já
estava definido na época da bossa nova – de certo modo, o mesmo conjunto com o
qual lidava Tom Jobim (no plano da composição) e com o qual ainda lida João
Gilberto (no plano da interpretação). “A música brasileira, diria Chico, ao
contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação”. O
último grande momento de afirmação dessa linhagem na obra de Chico, e também de
sua crença na força social da canção, parece ter sido o disco com o sugestivo
nome de Paratodos. Lançado na esteira do encerramento da era Collor, de certa
esperança suscitada pelas reformas econômicas que levariam ao real, e por um
dos últimos momentos de mobilização nacional, Paratodos ensaiava uma volta ao
grande mito da MPB, depois de alguns trabalhos mais introspectivos e vagos,
boiando em meio à maré roqueira dos anos 1980.
O baião que
abre o disco, e que lhe dá nome, faz uma extensa catalogação afetiva dos
maiores protagonistas dessa tradição – retomando o guarda-chuva da MPB – para
no fim afirmar: “vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro”. A
faixa Piano na Mangueira, ao mesmo tempo que melancolicamente indicava o
crescimento da distância entre o morro do samba e o piano de Tom Jobim,
apostava ainda numa possibilidade de contato. Embora a música não fosse de
levantar poeira, havia sempre a esperança de que poderia ainda assim, quem
sabe, entrar no barracão, nem que para tanto fosse preciso “mandar subir o
piano pra Mangueira”. Grande parte da força de Paratodos vinha também do fato de ali ter o artista atingido um
ponto de equilíbrio entre suas pretensões coletivistas – de uma canção que
efetivamente fosse Paratodos – e o desenvolvimento de um idioma pessoal ultra
sofisticado. O disco é inteiramente perpassado pela crença reafirmada na canção
como porta-voz do destino do país. Não há dúvidas: uma obra prima da
discografia brasileira. Mesmo que o Brasil redemocratizado não entrasse nos
eixos, haveria sempre a canção para reconciliá-lo consigo mesmo.
É essa fé na
canção e no Brasil que parece ter sido perdida. Depois do Paratodos, Chico
definitivamente e cada vez mais se tornou “Parapoucos”. Junto com o aparente
fim do ciclo histórico do mito-Brasil e com tudo o que isso implicava de investimento
na noção de uma unidade nacional, o caminho de um refinamento cada vez maior no
artesanato das canções simplesmente já quase não encontrava resposta junto ao
público – já não lhe dizia tanto respeito, como se o canal de comunicação
tivesse sido perdido. Numa época em que a regressão da escuta (como diria
Adorno) parece ter avançado a passos largos, sobrecarregando o grau de
redundância em detrimento da originalidade, suas canções perderam muito da
relevância que um dia tiveram (parece que o mesmo ocorreu com todos os grandes
da MPB). As últimas turnês e discos nos deixam com a impressão de que nada de
novo foi deixado no horizonte da memória coletiva.
Na
impossibilidade de se refugiar em um mito que se afigura cada vez mais falido,
Chico passou a tematizar nas canções a impossibilidade de sua realização. E não
apenas isso: foi o primeiro membro do primeiro time da MPB a cogitar, numa
entrevista, o fim da canção. É possível que o indicativo mais direto desse
mal-estar tenha surgido na música Subúrbio, como sugeriu Fernando de Barros e
Silva. Subúrbio é um choro-canção no qual praticamente cada sílaba cantada é
acompanhada por um acorde diferente; a melodia é envenenada, cheia de
modulações, e transforma a letra numa espécie de discurso. A canção fala da
quase impossibilidade atual de se falar da periferia utilizando o afetuoso e
melancólico ponto de vista de um choro-canção – que soa idílico, antiquado e
paternalista. É como se a linguagem da MPB não fosse mais capaz de integrar
simbolicamente as cisões sociais da realidade brasileira. Antenado, lúcido,
consciente e cético, Chico adentra os versos finais com a indagação de alguém
que olha de fora e se diferencia – e o atordoado “que futuro tem aquela gente
toda?”, de Subúrbio, conforme notou Fernando de Barros, já está muito distante
do sentimental “tem certos dias em que eu penso em minha gente”, de Gente
Humilde (Chico e Vinícius de Moraes) -; e depois arremata com o amargo
diagnóstico – “perdido em ti eu ando em roda, é pau é pedra, é fim de linha, é
lenha, é fogo, é foda!”. Ao utilizar a primeira pessoa, Chico está falando de
sua própria impotência diante da situação.
A referência
a Águas de Março, negando, de algum modo, “a promessa de vida no teu coração” –
que, no fundo, é a promessa de toda a linhagem que se inaugura com a bossa nova
-, fornece o indício final do mal-estar ao qual me referi. Não há mais um
Paratodos.
São bem
raros na obra de Chico os momentos em que ele fala como Chico. Porque Chico é,
ao contrário de Caetano, o poeta das máscaras. Aquele que fala principalmente
através de personagens. Seu olhar pessoal costuma ser apreendido indiretamente.
O poeta das musas e dos enjeitados. O que está em jogo, junto com o
estilhaçamento de uma noção de Brasil, é a perda desse lugar de enunciação. Na
verdade, isso já fora de certo modo anunciado na capa de As Cidades, o disco
que veio logo depois de Paratodos. Nela, com o auxílio da computação gráfica,
foram criadas quatro versões étnicas do próprio Chico, invertendo um pouco a
dinâmica da capa de Paratodos: ao invés do retrato 3×4 de Chico (feito, se não
me engano, para fichamento numa delegacia) cercado de tipos populares, é o
próprio Chico que se transforma nos tipos raciais do grande mosaico brasileiro.
O resultado é assombrosamente feio, desajeitado, mas capaz de refletir de
maneira premonitória os impasses para o qual Chico se encaminhava. O mal-estar
parece ter vindo antes na forma de imagens do que de músicas.
Há lindas
fotos de Chico junto com Tom Jobim ao lado de Cartola e de Pixinguinha. Ainda
havia, naqueles dias, possibilidade de diálogo. Olhando essas fotos hoje,
sente-se que algo se quebrou, está se quebrando. Os enjeitados possuem outros
idiomas, idiomas próprios que não necessariamente passam pelo mito ao qual se
filiaram Tom e Chico. Logo, só resta a Chico tirar a máscara e falar a partir
de seu próprio lugar. E é isso o que acontece em Sinhá – última faixa do último
disco de Chico – e de uma forma tão surpreendente que se impõe como o fator
decisivo da canção. Partindo do idioma musical de João Bosco – idioma no qual
os índices da herança africana do samba aparecem muito nítidos, Chico cria uma
narrativa que remonta ao Brasil Colônia. Dá voz a um escravo, reproduzindo em
primeira pessoa o tipo de fala da senzala, e conta uma história de violência
que parece diretamente extraída dos livros de Gilberto Freyre. Mas o que
poderia ter sido uma novela de época torna-se a confissão mais aguda do
mal-estar que desde sempre esteve presente nos olhos azuis da MPB – que na
letra são os olhos do carrasco, “por que me faz tão mal/ com olhos tão azuis?”
-, de sua contradição interna que somente então, quando o mito unificador
perdeu força, pôde se revelar na plenitude. Uma modulação no fim da música gera
uma variação melódica que, sem perder o contato com a primeira parte, é capaz
de comentá-la sob um outro ponto de vista – cai a máscara do escravo e surge a
própria face de Chico, dirigindo-se em tom de confissão ao ouvinte: “E aqui vai
se encerrar/ o canto de um cantor/ com voz de pelourinho/ e ares de senhor/
cantor atormentado/ herdeiro sarará/ do nome e do renome/ de um feroz senhor de
engenho/ e das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou sinhá”.
Poucas vezes
uma canção concentrou tamanha violência. De dentro do mito, Chico expõe a contradição
viva do lugar que ocupou durante décadas na cultura brasileira. O caminho agora
é inverso: é o rapper Criolo que rasura a letra original de Cálice para calcar
nela o drama dos excluídos, ao mesmo tempo em que presta uma homenagem a um
cânone já distante, que tem sua potência cada vez mais colocada em xeque. Talvez seja
esse o momento mais importante da história recente da tal MPB – talvez seja, no
fundo, o momento em que
Chico dela se despede de vez. Mais do que isso: o momento no
qual seu mais legítimo representante declara abertamente sua falência como
mito. Que esse momento tenha sido tão pouco comentado serve de constatação da
perda da centralidade desse tipo de canção na vida brasileira, de seu
recolhimento a um estreito nicho, e talvez até do esvaziamento de um
determinado tipo de debate histórico, capaz de vincular num único feixe os
frutos e as raízes do Brasil.
Falar de uma
Música Pós-Buarque é falar sobre o destino dessa linhagem na possível ausência
do mito que a embalava.
* (Fala
apresentada no evento Transversais do Tempo, como parte da mesa Música
Pós-Buarque, realizado no SESC-Copacabana, 09 de junho de 2012)
* Paulo da
Costa e Silva é o coordenador da Rádio Batuta.
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