Há semanas estive em Brasília, a
convite do Ministério da Cultura, e depois dos assuntos tratados, assisti um
concerto da Orquestra Sinfônica Simon Bolivar da Venezuela. Foi emocionante ver
a qualidade, a segurança e a espontaneidade daqueles jovens músicos tocando a
emblemática “Sagração da primavera” de Stravinsky, dirigida por Dudamel. Este
conduzia de cor a obra com a nonchalance
de como se estivesse interpretando Alma
Llanera com seus pupilos. Seria algo parecido a estudantes de pintura
reproduzirem com perfeição, numa igreja
da capital, o teto da Capela Sistina, oba de Michelangelo, que comparo à
Sagração da Primavera em importância artística e histórica.
Essa música, que em 1940 se tornou trilha sonora de um
antológico filme infantil de Walt Disney, Fantasia,
agora é brilhante e bem-humoradamente executada por jovens, não assustando
mais ninguém – bem diferente do que ocorreu no Théâtre des Champs-Élysée de
Paris naquele 29 de maio de 1913. Apesar disso, parece que a feitiçaria na qual
a obra se baseia contuinu provocando em mim serias perturbações. É com se eu a
estivesse ouvndo pela primeira vez e com a repetida sensação de que, para além
daquilo, não seria mais possível fazer música em nosso tempo. Algo parecido a
sensação de Brahms ao ouvir a Nona de Beethoven, o que lhe custou
vinte anos de reflexões, inseguranças e angústias para compor sua primeira
sinfonia.
Naquele início dos 1900, a agressão às avessas de Jeux de Debussy, desarmava por
completo pathos romântico já agonizante – obra estreada no mesmo teatro de
Paris no qual duas semanas depois seria ouvida a première de Sagração. Sete
meses antes , em Berlim, a primeira execução de Pierrot Lunaire de Shönberg, propunha a própria extinção da
Tonalidade (vocabulário, gramática e forma musical do Ocidente). Para completar
o quadro demulidor, a apresentação da composição de Stravinsky armava a mais
estupenda confusão na mente das pessoas com sua cacofonia. Isso tudo
prenunciava um século de grandes dificuldades para os caminhos da criação
artística. Tanto é que os “ismos” de estilos que surgiram não chegaram a
completar uma década. O pânico causado por essas obras e a própria hecatombe
mundial de 1914 a
1918, talvez tenha levado artistas de todo o mundo a mergulhar num estranho
neoclassicismo, em busca possivelmente, de apoios estético–filosóficos em meio
àquele “caos” dos códigos de comunicação
espiritual.
No segundo pós-guerra houve
uma recuperação desenfreada do dodecafonismo dos anos 1920, de Shöenberg
e Webern. Parece que mundo da música havia
encontrado “paz” e outra vez o espirituo de “vanguarda” numa linguagem
de comunicação unificadora de mentes. Em países e regiões de culturas das mais
diversas, escrevia-se música com uma lupa, uma pinça e uma calculadora... Esse frenesi racionalista em, porém, não
ultrapassou uma década, com a chegada dos explosivos anos 1960, que lançaram
pelos ares com seus Happenings e
aleatorismos.
A chegada da música eletrônica nessa época abria perspectivas
infinitas. Pela primeira vez na história, o ser humano passava a fazer música
sem que fosse raspando uma corda, assoprando um tubo ou batendo em um tambor.
Os estúdios da rádio Colônia, Alemanha, viraram a vanguarda do mundo, motivando
instalação de muitos outros em outros países. O que aparentava ser um manancial
interminável de recursos para uma nova música, contudo, não encontrou uma
dinâmica produtiva e de consumo regular, permanecendo como fenômeno no nível
das experiências e curiosidades históricas da época.
O rock progressivo do final da década de 1960 tirou muito
mais proveito do eletronismo, expandindo enormemente a nova linguagem popular
oriunda dos sintetizadores, com Jimi Hendrix à frente. O “boom” criativo
daquela música, porém, também não ultrapassou a umadécada. Na segunda metade
dos anos 1970, a
juventude que curtia estatelada no chão o som psicodélico das guitarras e
teclados “envenenados”, levantou-se, abandonou as drogas e começou a dançar
novamente, lembram-se do estilo chamado discoteque? Recuperou-se o
“bate-estaca” sem sincopas e liberdade criadora transformando o eletronismo dos
teclados, das guitarras e das percussões
na mais vulgar e redundante música pop, que perdura até hoje no grande
mercado da música da cultura pop.
As últimas décadas do século XX confirmaram este estado de
coisas. À medida que a tecnologia disparava usas investigações e descobertas,
numa velocidade tal que o conhecimento humano na área chega a dobrar a cada
dois anos, do ponto de vista artístico não se viram movimentos, vanguardas, nem
de novas tendências. O delírio cultura da Belle
époque e das duas primeiras décadas do século passado deu lugar ao frenesi
tecnológico do início do século XXI. Os grandes conglomerados artísticos que
formavam estilos no início do século XX foram substituídos por equipes anônimas
e técnicos da atualidade. O feroísmo individual e reservado dos inventores de
técnicos do início dos 1900 (Ford, Santos Dumont, Edison) foi substituído, nos
dias que correm, por artistas desenvolvendo pesquisas herméticas e subjetivas.
Que tipo de fenômeno teria havido em Paris no palco do
Théatre des Champs-Élysées naquele maio de 1913 entre os dias 14 e 29 de Jeux à
Sagração de Primavera? Estive em Paris por ocasião das comemorações do
centenário dessas fatídicas duas semanas. Fui ao Champs-Élisées. Andei por seus
corredores, sua platéia, toquei naquele palco, fitei pessoas. Mas sai daquele
“templo” mais perplexo que nunca. Parece que os anos passados não foram
suficientes para entendermos o que ocorreu neste íntimo espaço de tempo, neste
deslumbrante século da história humana...
Júlio Medaglia
Revista Concerto – junho de 2013 – Atrás da
Pauta – p. 10
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