A aldeia universal de
Villa-Lobos
O conflito entre o
regional e o universal foi um dos principais dilemas que se colocou ao artista
a partir do século XX. Tendo se caracterizado, desde os primórdios, como o
século da universalização, mas herdado as tendência do final do século XIX que
revelavam o vigor dos valores regionais na cultura ocidental, esse período
criou uma verdadeira angústia estética e ideológica na mente dos autores,
sobretudo daqueles vindos de países com rica expressão popular, como é o caso
do Brasil. Os “nacionalóides” nos dizeres de Décio Pignatari) adoram a frase de
Léon Tolstoi, em que ele afirma que “se quiser ser universal, comece por pintar
a sua aldeia”. Ora, se a pessoa não possuir a riqueza de alma do grande
escritor romântico (e “anarquista”) russo, facilmente vai conferir a essa frase
um sentido provinciano e caipira. Mesmo que em um de seus romances ele tenha
tratado do caso de um personagem de aldeia dos cafundós do Cáucaso, o viés
crítico como Tolstoi abordou aquela realidade possui uma dimensão da tal
maneira universal e humana q, que um leitor desprevenido, ao lê-lo sob o céu
azul de Amaralina, vai se identificar com ele como se o fato tivesse ocorrido
na esquina de sua casa e não nas longínquas montanhas pedregosas e geladas do
Mar Negro.
Tudo isso me veio à
mente ao ouvir há pouco a interpretação - por parte de uma jovem virtuose
francesa que esteve no Brasil, Fanny Clamigirand – da Sonata-Fantasia nº 1
(Desesperança) para violino e piano de Heitor Villa-Lobos. Essa obra plena de
virtuosismos revelava, por parte do autor, um completo domínio artesanal da
técnica composicional e dos recursos dos instrumentos, e uma total identidade
com a música ocidental que se fazia na época. Ora, essa sonata foi composta no
ano de 1912, exatamente no momento em que Villa-Lobos
voltava de uma longa viagem pelo interior do Brasil. Tão embrenhado esteve ele
em suas pesquisas que sua família chegou a pensar que havia morrido, mandando
celebrar uma missa em louvor a sua alma.....
Existe, também uma
gravação, “Villa-Lobos por ele mesmo”, na qual em meio a interpretações suas de
composições próprias ele faz um longo discurso, uma verdadeira oração de amor
ao Brasil, provavelmente fruto dessa sua identificação com nosso valores
humanos e artísticos. Sabe-se que Villa ao voltar dessa longa peregrinação , no
início da segunda década do século passado, fixou-se no Rio e iniciou com
obstinação a elaboração de sua genial criação musical. Seria esse, portanto, o
momento de começar a “pintar sua aldeia”. Villa fez exatamente o contrário.
Procurou exercitar seus conhecimento no universo impressionistas e
expressionistas que então nasciam na Europa. Em vez de começar a compor lundus
e maracatus para sala de concertos, escreveu uma música com know-how
composicional do fervescente início de uma nova era na história da humanidade,
o revolucionário século XX.
Ao trazer para usa obra
os valores telúricos que tanto o encantaram – com essa postura e com uma mente
tão enriquecida de técnicas expressivas – o resultado teria de ser efetivamente
outro e de uma grandeza fora do comum, um legado de dimensões universais.
Villa-Lobos o músico brasileiro mais executado em todo o mundo (popular ou
erudito), segundo revelam as arrecadações de direitos autorais que nos chegam
do exterior.
Transformar em matéria
prima cultural em um valor universal é simplesmente usar uma criação popular
espontânea e orquestrá-la ou elaborá-la para sala de concertos. Existem
expressões musicais populares sem o menos interesse, paupérrimas, e que tem
sentido apenas dentro dos limites e do sentimento da aldeia a qual foram
geradas, de nada adiantaria, portanto, “pintá-las”. A mente iluminada de Villa
é que soube, mais do que fazer uso da expressão popular natural, identificar na
nossa criação autêntica os pólos efetivamente criativos e de importância
cultural. Isso associado a sua capacidade de “industrializar” idéias,
matérias-primas artísticas, fizeram com que sua obra tivesse a dimensão maior
que todos nós conhecemos e que o mundo reverencia, não só por “ser
brasileira”, mas por ter uma densidade estética que a coloca no mesmo nível dos
maiores compositores dos períodos mais ricos e transformadores da história, o
século XX.
É por essa razão
que quando o “Dante”, o “Michelangelo” o “Homero” do século XX – Igor
Stravinsky – veio ao Brasil, ao descer do avião parou no último degrau da
escada , fixou o olhar no chão e disse: “que satisfação pisar na terra que
nasceu Villa-Lobos”.
Por Júlio Medaglia
Revista Concerto – Nov.
2009 - Atrás da Pauta – pag. 18.
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