Cientistas creem estar perto de descobrir por que uma pessoa
que sofre de amnésia e perde a memória de quase tudo na sua vida consegue ainda
reter conhecimentos musicais.
A resposta pode estar no fato de que as memórias musicais
são armazenadas em partes diferentes do cérebro que as de outras memórias.
Quando o maestro britânico Clive Wearing contraiu uma
infecção no cérebro em 1985 --uma encefalite por herpes--, ficou com uma
capacidade de recordar apenas os eventos ocorridos 10 segundos antes. A
infecção danificou uma parte do seu cérebro conhecida como lobo temporal médio.
Embora apresentasse um dos casos mais graves de amnésia
conhecido pelos cientistas, a habilidade musical do condutor permaneceu
intacta. Hoje com 73 anos, Wearing consegue ler partitura e tocar música no
piano, e regeu o seu antigo coral.
Em um congresso da Sociedade para a Neurociência realizado
neste mês em Washington, um grupo de cientistas alemães descreveu o caso de um
violoncelista profissional --identificado apenas como PM-- que contraiu
encefalite por herpes em 2005.
Incapaz de recordar as coisas mais simples --como a imagem
de sua própria casa--, PM manteve intacta a sua memória musical.
ANATOMIA DO CÉREBRO
Segundo o médico que estudou o paciente, Carsten Finke, do
Hospital Universitário de Charite, em Berlim, o lobo temporal médio do cérebro,
severamente afetado em casos de encefalite por herpes, é "altamente
relevante" para a memória de eventos e como, onde e quando eles ocorrem.
"Mas estes casos sugerem que a memória musical pode ser
armazenada de forma independente do lobo temporal médio", afirma o médico.
A equipe de alemães também estudou o caso de um paciente
canadense nos anos 1990 que perdeu toda a sua memória musical após uma cirurgia
que danificou especificamente uma parte do cérebro chamada de giro temporal
superior.
O caso levou a equipe a sugerir que as estruturas do cérebro
usadas para armazenar memória musical "devem ser o giro temporal superior ou
os lobos frontais".
Entretanto, o médico acredita que são necessárias novas
pesquisas para confirmar a hipótese.
"O que é realmente novo nesses casos é que, mesmo em
casos de amnésia densa e grave, ainda existem ilhas de memória intactas, a
memória musical", afirmou.
"Esta memória pode ser usada como um ponto de acesso a
esses pacientes. Podemos pensar, por exemplo, em relacionar a música a
atividades específicas, como tomar medicação, ou submetê-los a musicoterapia
para recuperar qualidade de vida."
VELHOS HÁBITOS
A neuropsicóloga Clare Ramsden ressalta que a memória
musical é diferente dos outros tipos de memória. "Não é apenas
conhecimento, é algo que você faz", define.
A sua entidade, Brain Injures Rehabilitation, voltada para a
reabilitação cerebral, estudou os casos de três músicos, incluindo Clive
Wearing. As conclusões mostram que as atividades musicais envolvem diferentes
partes do cérebro.
"Nossa pesquisa está começando a mostrar que as pessoas
com dano nos lobos frontais têm suas habilidades musicais afetadas de forma
diferente de pessoas como Clive, cujos lobos temporais médios foram
danificados", disse Ramsden.
"Clive ainda consegue ler partituras e tocar música. As
pessoas com danos nos lobos frontais podem ter dificuldades de ler uma partitura
e tocar uma música pela primeira vez, mas são boas em músicas que elas já
sabem."
Para o professor Alan Baddeley, autor de estudos sobre
Wearing pela Universidade de York, todos os casos "mostram que a memória
não é unitária" e que "há mais de um tipo de memória".
"A amnésia não destroi hábitos, mas os pacientes perdem
a capacidade de adquirir e reter informação sobre novos eventos."
HANDEL
A esposa de Clive, Deborah, é autora de um livro,
"Forever Today" ("Para Sempre Hoje", em tradução livre),
que relata como a vida do casal mudou desde a amnésia do marido.
"Mesmo tendo um piano no quarto há 26 anos, ele não
sabe disso até que o instrumento seja mostrado a ele", contou Deborah à
BBC.
Mas, diz, se você der uma música nova, a visão dele percebe
a partitura e ele toca a música no piano, sem aprendê-la. "Clive não sabe
que tocava piano, nem que ainda sabe como tocar."
A esposa diz que, mesmo sem saber, o ex-maestro melhora sua
apresentação cada vez que toca uma determinada música, e que ele ainda é capaz
de tocar, instintivamente, canções que sabia de cor no passado.
"Ele aprendeu 'O Messias' de Handel quando era criança
e ainda sabe cantá-la."
[A música] "é o
único lugar onde podemos estar juntos, porque enquanto a música está tocando
ele é completamente si mesmo", diz Deborah.
"Quando a música para, ele volta a cair do abismo. Não
sabe nada sobre sua vida. Não sabe nada do que aconteceu com ele em toda sua
vida."
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