quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sagração da Primavera - Parte IV - Final.



UMA NOVA LINGUAGEM HARMÔNICA

É espantosa a evolução do estilo de Stravinsky no curto intervalo de menos de três anos entre a composição de Pássaro de Fogo e A Sagração da Primavera.
Já com Petrunshka, a ruptura coma sintaxe harmônica herdada do século XIX havia sido radial: o abandono do cromatismo em favor de um diatonismo quase Naïf, baseado em melodias feitas de frases curtas e, por sua vez, pressupondo encadeamentos harmônicos simples, com raras modulações, substituídas pela justaposição brusca ou mesmo pela superposição de tonalidades. Em Petrunshka, Stravinsky inaugura o efeito de “bitonalidade entre teclas brancas e pretas” (na cena “Chez Petrunshka”); para André Schaeffner, o “Acorde Petrunshka” talvez “não comporte explicação e deva ser aceito como uma sonoridade irredutível”. Na “Sagração, o uso de agregados harmônicos se complexifica com o emprego de blocos de sonoridades de 6 e 7 notas”.
Ainda em 1925, Nadia Boulanger diria que: “O principal obstáculo para a apreciação da música de Stravinsky, para a maior parte das pessoas, é a dissonância, pois todas as obras posteriores a Petrushka são dissonantes, e algumas de forma extrema. O maior obstáculo a vender reside no fato de que a dissonância, em Stravinsky, é muito mias melódica do que da estrutura dos acordes (...). Na música de Stravinsky, somos confrontados não apenas ao contraponto, mas a um contraponto cujas concordâncias de tal forma que perdemos de vista as linhas que as produziram e que deveriam ser no nosso objeto principal. Para apreciar tal música, fica óbvio que temos que restabelecer novos hábitos de escuta, readquirindo uma nova percepção dos antigos valores lineares que foram o orgulho do Renascimento e glória de Bach”.

A GESTAÇÃO DA SAGRAÇÃO

Nos seus textos dos anos 1930, Crônicas de Minha Vida e Poética Musical. Stravinsky mostre-se um defensor da “música pura”, tornando célebres algumas afirmações polêmicas, tais como: “Considero que a música em sua essência, é incapaz é incapaz de expressar o que quer que seja: um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, um fenômeno da natureza etc.(...). A expressão nunca foi à propriedade imanente da música”.
Ao mesmo tempo em que descarta o estereótipo de inspiração, na sua acepção romântica, não deixava de ressaltar o quanto o seu processo criativo era suscetível a estímulos externos, frequentemente de natureza tátil: o contato com o teclado (Petrunshka e Sagração), as irregularidades da prosódia popular russa (Les Noces) o latim clássico (oedipus Rex) e da Vulgata (Sinfonia dos Salmos) e imagens visuais (Sagração).
O ponto de partida da Sagração, como no caso de Petrunshka, (com seu famoso acorde) foi à improvisação rítmica, no piano em torno de um “acorde gerador”: a agregação que do início a cena dos “Angurios Primaveris” com seu repleto em ostinato, repleto de acentuações irregulares. Esses primeiros compassos, contendo ao mesmo tempo o seu ostinato, definem por um lado o que será a sonoridade harmônica de toda a obra e por outro, uma métrica nova que abra as portas para imaginação e liberdade rítmicas sem precedentes na História da Música. Os esboços da Sagração mostram essa dupla figuração (acorde e ostinato) na sua primeira página.
A correspondência de Stravinsky, assim como entrevistas posteriores, deixa clara sua convicção de que estava escrevendo algo importante e novo. Para seu colaborador Nicholas Roerich, diria em setembro de 1911: “já comecei a compro, num estado de paixão e entusiasmo extremos o esboço da Introdução dos “Augúrios Primaveris”. A música está vindo com muito frescor e muito nova”. “Em março de 1912, ele escreveria para Andrei Rimsky-Korsacov:” Você provavelmente sabe que estou trabalhando na obra que imaginei após O Pássaro de Fogo(...). “Se estivesse aqui, você entenderia que é como se 20 anos e não dois, tivessem se passado dede que O Pássaro de Fogo foi composto”. E, numa entrevista em 1965, Stravinsky relembraria as condições em que escreveu A Sagração, relatando que a compôs (tendo como único guia o meu ouvido (....) fui apenas o veículo através do qual A Sagração aconteceu”.
Um sinal de incessante capacidade de requestionamento de Stravinsky, neste ponto semelhante ao Pierre Bourlez em suas recomposições de Eclats e Sur Incises, era a sua inquietude quanto a não ter dado à Sagração uma forma, segundo ele definiria , apesar das numerosas revisões da obra que realizou nos anos 1920 e 1940, especialmente uma nova notação rítmica para a “Dança do Sacrifício”, Nessa mesma entrevista, declararia “Existem páginas da Sagração das quais gosto, e são interessantes até hoje. Mas também existem dezenas de páginas que, atualmente, deixam-me absolutamente indiferente” Seu amigo, o compositor Claudio Spies, relata o episodio de uma cura conversa, na mesma época, logo aos uma gravação da Sagração, na qual Stravinsky, realizando mudanças que julgava importantes na orquestração e no encadeamento entre seções, porém concluía, melancolicamente, que nunca poderia fazê-lo, pois “seria uma tarefa que exigiria cinco anos”.
Para Stravinsky, que havia escrito em suas Chroniques de ma Vie que o “fenômeno e, sobretudo uma ordem entre o Homem e o tempo” e “a música é o único campo onde o homem realiza o Presente”, esse Presente, com a possibilidade de mais uma vez repensar a Sagração, lhe era negado.

Manoel Correa Lago
É membro do Conselho de Administração da Osesp e autor de O Circulo Velloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil: Modernismo musical no Rio de Janeiro antes da semana (Doutorado, Unirio, 2005).

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