A composição é um
processo de autoconhecimento, de reaprendizado da função que as velhas
disciplinas de criação musical proporcionam na música do passado. A criação,
hoje, só pode ser autêntica quando é transgressora de alguma tradição
academicamente estabelecida.
O processo de composição implica aprendizagem, saber usar a
imaginação e ter os recursos técnicos para fixar idéias por meio da escritura.
Não é o mesmo processo da interpretação musical, do tocar e recria a música, que
é a decodificação da partitura. Compor tocando é um processo diferente de
compor usando a imaginação, o papel e o lápis (ou computador). Quem compõe
tocando corre o risco de repetir o convencional e os padrões musicais
preexistentes. Esse é um processo, por exemplo, comum na música popular, na
qual muitas vezes o intérprete confunde-se com o compositor e na qual o espaço
para a invenção é diferente do espaço de invenção da música erudita.
Não se trata de valores de um processo em relação a ouro. A
inovação e renovação de linguagem dão-se pelo uso de materiais sonoros inéditos
ou pela reciclagem de material em novas combinações. Tudo
depende do risco que o compositor está disposto a assumir. “Temos um dever para
com a música: é o de inventá-la” disse Stravinsky. Se essa é a meta do
compositor, então a invenção torna-se o fator mais importante do aprendizado.
Se a meta é manter a tradição, então a invenção se dá ela reciclagem dos
materiais e recursos já em uso, que pode ou não ser inovadora.
Por vezes, a limitação auditiva (Beethoven) ou mesmo a
inabilidade de tocar bem um instrumento (Berlioz) funciona como estimulo para
aventurar-se e m novíssimas praias sonoras.
Um estímulo, já que o discurso sonoro que está sendo criado
por meio da escrituras e estrutura por outros parâmetros da imaginação, da
estruturação das idéias. AA gestualidade sonora extremamente original e brutal
da música de Iannis Xenakis, por exemplo, teve muitas vezes sua origem em
processos de cálculos estruturais oriundos da arquitetura, e não do tocar um
pano. A música não se faz apenas com sons, mas com idéias que possa produzir e
criar novas formas sonoras e conseqüentemente novas maneiras de percepção
dessas formas.
Esse tênue limite entre a idéia e o som é a região pela qual
os compositores trafegam, alguns com habilidade surpreendente, deixando um
legado para a música ocidental. Compositores desajeitados, no sentido de lidar
mal com a tradição musical, também deixaram contribuições originais.
Desconhecendo a tradição, usaram a composição
como aprendizado para atingir e experimentar novas paisagens
sonoras. No século passado houve um proliferação de compositores que, negando o
academicismo, ampliaram definitivamente os limites da música.
Houve novidades tanto nos que restauraram algumas tradições
como naqueles que pensavam estar navegando por mares inéditos. Constatou-se que
não é o material usado, melodia, harmonia, ritmo, que torna uma musica
inovadora. Composição é burlar regras e transgredi-las. É um compromisso quase
político com a expansão humana, sem esquecer o que há de consolador na música.
Luciano Berio fez uma comparação do seu fazer musical com o
uso que as pedras tiveram nas inúmeras reconstruções da cidade de Jerusalém: em
uma época, uma pedra servia a construção de um templo, em outra, servia para
calçamento de uma viela. Não que o som de uma flauta tenha mudado tanto desde
as épocas mais remotas até os dias de hoje. Não se trata de procedimentos
musicais, mas da função que eles tem na sociedade que os ouve, que eles exercem
para a alteração da percepção humana.
A música não promove grandes revoluções sociais, mas a
percepção de novas formas na mente e na sensibilidade humana pode oxidar e
corroer posturas reacionárias do ouvinte passivo, proporcionar novas estruturas
de pensamento. Descontextualizar velhos sons, como na parábola das pedras de
Jerusalém, permite observar que o reacionarismo acadêmico nas inovações
super-contemporâneas nascidas de uma neo-vanguarda revisada.
Assim, penso que a inovação não vem do atonal ou das velhas
tríades tonais, mas da relação que a composição tem na vida do compositor, de
como ela expande o seu pensamento, sua
imaginação e conseqüentemente sua música, também no meio em que ela é
difundida, ouvida e percebida. A postura academicista ode se dar tanto na
música superinovadora quanto no resgate do velho do maior, no ensino pouco
inteligente do contraponto ou outra disciplina qualquer das escolas de música,
que não enxergam o que está na essência dessa forma de escritura musical.
Portanto, acredito que a composição é um processo de autoconhecimento, de
reaprendizado da função que as velhas disciplinas de criação musical
proporcionaram na música do passado e o que elas poderiam desvendar nos dias de
hoje. A criação só pode ser autêntica quando e transgressora de alguma tradição
academicamente estabelecida.
Fernando Guimarães Álvares.
Professor de composição
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