Se o pianista Sérgio Mendes
deixou o Beco das Garrafas, no Rio, para fazer sucesso, fama e fortuna com sua
adaptação ao gosto americano dobeat brasileiro, nos idos de 60 e 70, o
percussionista Naná Vasconcelos saiu de Recife, passou pelo Rio e cumpriu a sina
daquele velho slogan da Rádio Jornal do Commercio ("Pernambuco falando
para o mundo") ao seduzir o sofisticadíssimo universo cult do jazz
consumido (e venerado) na Europa. Tendo acompanhado com seus chocalhos e
tambores instrumentistas guindados ao panteão – do intérprete mineiro Milton
Nascimento ao saxofonista argentino Gato Barbieri e ao guitarrista americano
(de alma mineira) Pat Metheny – e gravado no selo que representou a excelência
da música instrumental planetária nos anos 70 e 80, o ECM alemão, ele passou a
ser considerado, sem favor nenhum, o melhor percussionista do mundo. Daí, sua
opção por morar em Nova York, capital do Planeta. Só que agora ele vive também
numa casa na Praia do Janga, na velha Recife de Gilberto Freyre e do
"mangue beat", de Francisco Brennand, Ariano Suassuna, Geraldinho
Azevedo, Ascenso Ferreira e Alceu Valença.
Naná Vasconcelos é assim mesmo:
uma fusion em constante movimento. Da própria pele negra faz atabaques que lhe
ressoam na mente e percutem o ritmo de um coração macumbeiro e folião. Seu
berço recifense (ninguém nasce à toa numa cidade de cujo calendário turístico
consta uma festa chamada "a noite dos tambores silenciosos") remete-o
ao remelexo safo e safado do xote, do xaxado e do baião. Sua vocação de globe-trotter
e de permanente guardião das tradições do presente fê-lo mergulhar com
competência e sensibilidade nos mistérios nem sempre gozosos da vanguarda
musical do século 20, particularmente o legado eletrônico de John Cage. Some-se
a isso um sorriso absoluto de marfim, sem meios tons, sem peias, sem mais nem
menos – e aí já se torna possível entender a beleza, o bulício e sobretudo a
alegria sem pudor do CD Minha Lôa, lançado por um selo independente, Fábrica
Discos, pernambucano tal e qual ele próprio.
Esse CD é uma visita marcada às
raízes de onde se produziu a seiva de que se nutre a verve de um artista
consagrado fora de casa, mas que nunca se perdeu no caminho da volta para lá.
De saída, o título refere-se ao maracatu rural de Pernambuco (a ópera popular que
tanto encanta o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, recifense por adoção):
"minha lôa" – esclareceu Naná à repórter Adriana del Ré, do Estadão –
significa "minha maneira, o que estou gostando de fazer agora". Um my
way de Paul Anka, que Frank Sinatra consagrou, mas bem brasileiro, na medida em
que a música eletrônica se mistura com os ritmos nativos, para resistir aos
quais não dá.
Sim, porque o último lançamento
fonográfico de Naná se assume dançante mesmo, sem subterfúgios – pode
claramente se inserir no panorama da Música Pra Pular Brasileira. O "Afoxé
do Nego Véio" pisa no barro do chão dos terreiros de candomblé ("E
agora nêgo só quer dançar"). No "Forró das Meninas" ("Tira
a faca da bananeira, deixa de besteira e vem morar mais eu") assoma o
aconchego sem-vergonha de outro tipo de samba – palavra pela qual também se
designam os bailes populares no sertão, os forrós.
E, assumindo-se brasileiro até
na citação da "Bachiana" do maestro Villa-Lobos (na faixa
"Curumim"), o CD não seria completo sem carnaval – marcando ponto no
maracatu "Caboclo de Lança" ("é rural, é o baque solto abrindo
caminho para a capital") – e sem futebol. A canção entre as 12 que o abre
chama-se exatamente "Futebol" e chora a arte que se perdeu na relva
num refrão-síntese: "Não deixe o futebol perder a dança". Só que,
como tudo o que Naná faz é prático, esse manifesto, que seria assinado por
todos os fãs nostálgicos de Zizinho, Garrincha, Didi, Pelé, Tostão e Zico, não
pára na teoria. Ao reproduzir a narração radiofônica de lances de uma partida
do ludopédio, o autor mostra que, apesar de bretão de origem, esse esporte não
pode ser só força nem apenas estratégia & tática, pois é sobretudo ginga,
ou seja, música mais dança.
Bem, é aí que o ouvinte chega
ao xis da questão: em Naná Vasconcelos tudo é música e tudo é dança. Por isso,
a homenagem nostálgica que faz aos tempos do Codona (trio que ele formou com o
trompetista Don Cherry e o baixista Collin Walcott, ambos de jazz, e que gravou
um disco antológico) – ao registrar duas vezes o "Don's
Rollerskates", de Don Cherry, sendo a segunda, a que encerra o CD,
remixada pelo conterrrâneo DJ Dolores – mostra que o Brasil também fica na
África e o Saara chega até o Nordeste. Pelo menos no universo musical, rítmico
e dançante desse afro-nordestino feliz, que toca para fazer o mundo dançar.
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