Perguntado por este Cultura e Mercado se acho possível tornar as leis de incentivo à cultura no Brasil mais acessíveis e democráticas, respondi que sim, claro, de imediato. Mas esse sim exige uma reflexão um pouco mais profunda.
Bem, em primeiro lugar não acho correto pensarmos os mecanismos de incentivo à cultura de modo fragmentado, isto é uma lei aqui ou edital ali, etc. Gosto de pensar de modo mais sistêmico e orgânico, ou seja, o conjunto de ações de incentivo à cultura orientadoas por uma política pública construída a partir da negociação entre os diferentes setores das linguagens artísticas (literatura, música, artes plástica, artes cênicas, etc.), universidades, institutos, fundações e as demandas e os interesses do mercado.
Mas sei que isso é uma ideia de fundo, na realidade uma posição política. Na prática, hoje em dia, temos um acúmulo de experiências do governo vindas das esferas dos municípios, estados e federação fragmentadas em leis, editais e dinheiros orçamentários que vêm se somando e se sobrepondo de maneira desordenada e caótica. Daí a sensação de que muitas vezes o incentivo à cultura é difícil, inacessível e pouco democrático.
A experiência da democracia só existe dentro dos limites das regras estabelecidas pelo Estado. Portanto, no limite extremo, sem políticas públicas não há democracia, nem acesso. Impera a lógica do clientelismo e da exclusão.
Nesta perspectiva, as leis de incentivo à cultura são as principais ferramentas institucionais que um Estado republicano e democrático tem para usar. O ponto é como torná-las na prática uma ferramenta funcional.
Para isso precisamos manter um olhar no passado e outro no futuro. As experiências são históricas e se transformam constantemente, daí a importância do olhar permanente sobre o processos sociais, econômicos e culturais.
Por exemplo, ao longo dos últimos 20 anos, vimos uma importante lei de incentivo à cultura ser criada, a Lei Rouanet, que num primeiro momento permitiu que dentro das amarras de um Estado anacrônico surgissem a possibilidade de parcerias público-privadas para trazer recursos financeiros à cultura. Sabemos que ao longo dos anos esse mecanismo adquiriu características singulares que já foram analisadas: a preponderância dos interesses das empresas privadas na escolha dos projetos culturais, o marketing indireto, a criação de atravessadores e negociadores interessados nos ganhos financeiros entre os criadores e as empresas ou o surgimento de especialistas de prestações de contas para enfrentar a complexa burocracia criada pelo Estado, etc.
Até onde pude acompanhar, o Projeto de Lei que institui o Procultura é a primeira tentativa de um olhar mais sistêmico e orgânico. Em termos gerais, ele parte da ideia da construção de um Fundo Nacional de Cultura forte que permitirá que as ações culturais de interesse do mercado (com leis de renúncia fiscal para empresas privadas) e dos que estão fora dele (com programas específicos criados pelo governo e sociedade civil) convivam. É claro que entre essas duas pontas existe uma diversidade de criadores e produtores culturais que se misturam, se confundem e se alimentam deste próprio processo. Na realidade, a maioria.
No meu entendimento, esse PL sinaliza que o governo poderá reconhecer conceitualmente o campo cultural de modo complexo, híbrido e em permanente transformação. A despeito das questões específicas envolvidas para a implementação deste mecanismo, o que se vê aqui é um avanço de entendimento institucional político para um Estado acostumado a criar soluções institucionais técnicas. Um pequeno, mas importante passo.
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