Os regentes corais têm hoje à disposição um imenso acervo de obras, ao
menos potencialmente. Este acervo
abrange culturas diversas, um largo período de tempo, que se amplia cada vez
mais em direção ao passado, e ainda uma grande diversidade de gêneros, das
manifestações da cultura letrada aos universos populares transmitidos
originalmente por tradição oral, incluindo também as manifestações populares
urbanas transmitidas preferencialmente pelos meios de comunicação de massa.
Essa multiplicidade
sonora, cultural e linguística que forma o amplo espectro do repertório coral à
disposição do regente comum, aqui no Brasil ou em qualquer outro lugar do
mundo, é transmitida, perpetuada e renovada pelo mercado editorial, que por sua
vez existe graças ao estabelecimento de um código de notação de música que se
tornou um padrão comum entre países de culturas diversas. É através desse
código, a notação musical, que esse enorme repertório pôde ser compartilhado,
inclusive nas bases de dados e bibliotecas digitais.
Associada à notação
musical, estão as transcrições fonéticas (outro código compartilhado) e as
tabelas de aproximações fonéticas, com comparações entre os sons da língua
original e os sons da língua do público a que se destina a edição, como
elementos auxiliares na ampliação do repertório para além das fronteiras
nacionais e linguísticas. Em termos da nova cultura digital, que aos poucos se
impõe, já é possível comparar rapidamente as edições disponíveis com exemplos
sonoros (em áudio ou vídeo), inclusive com relação à pronúncia por falantes
nativos, o que já vêm sendo explorado por editoras musicais que publicam
materiais impressos, mas oferecem arquivos sonoros na internet.
A publicação de
música é parte da história social, e passou a existir em função de alguns
fenômenos históricos que ocorreram a partir da Renascença: a invenção da
imprensa, o crescimento do capitalismo, que propiciou que a publicação de
música se tornasse um negócio lucrativo, e a existência do compositor e dos
músicos profissionais, o que tornou a publicação de música uma
necessidade.
A expansão do
repertório, portanto, esteve ligada aos interesses da expansão comercial,
estabelecida por um mercado supranacional (o que foi conseguido graças ao
código de notação musical, como já expusemos) e sujeita às legislações
nacionais e internacionais que regulam os direitos autorais das composições
musicais e dos textos utilizados na música vocal, incluindo a cessão desses
direitos às casas editoras.
As dificuldades de
acesso às partituras, que foram um problema constante na prática coral
brasileira durante o século XX, estiveram ligadas às dificuldades de aquisição de
material (principalmente considerando que grande parte desse material depende
de importação) e às dificuldades linguísticas, no caso de edições que não se
dirigem diretamente aos falantes do português.
Mesmo quando nos referimos às edições feitas no Brasil, continuamos
tendo problemas de acesso, ou mesmo de conhecimento do que há editado, pois a
rede de distribuição e divulgação das edições nem sempre é eficiente, embora
estejam sendo criados mecanismos cada vez mais eficazes por grupos de
interesse, utilizando as ferramentas que deram origem ao conceito de “redes
sociais” e que agora começam a ser utilizadas também por comunidades acadêmicas
e artísticas.
A existência de um mercado fraco, ou quase inexistente, em termos de
edição de música coral, fez com que grande parte da música publicada no
Brasil durante o século XX estivesse
ligada a programas públicos, através de fundações culturais, secretarias,
ministérios e universidades, que nem sempre investiram na divulgação, na
distribuição e na promoção de reedições, pois muitas vezes essas edições foram
fruto de projetos de incentivo e não de investimentos comerciais. Os movimentos
editoriais mais fortes, pensando no canto coral, aconteceram naqueles momentos
em que se combinaram políticas de Estado, divulgação institucional e edições
bem dirigidas e comercializadas a preços acessíveis, como aconteceu na época de
Villa-Lobos com o Canto Orfeônico ou no Projeto Villa-Lobos da Funarte.
Reflexões sobre o significado histórico e social da publicação de
música fazem parte da reflexão mais ampla sobre a profissão de regente coral,
sobretudo para o regente em
formação. Este texto, portanto, tem o propósito de situar
regentes, educadores e pesquisadores diante do tema amplo que é o da publicação
e edição de música, para que a busca de repertório para as diversas práticas
corais possa estar ligada a um conhecimento mais preciso sobre os tipos de
edições disponíveis e sua adequação ao projeto prático em questão.
Impressão, Edição, Publicação, Editoração
Os termos que usamos possuem, às vezes, significados dúbios. Antes de
iniciar uma discussão mais aprofundada sobre materiais disponíveis, convém
esclarecer alguns termos.
Impressão é a técnica de produção de muitas cópias idênticas, a partir
de um original. Os processos iniciais de impressão utilizavam a superfície
plana da madeira, pedra ou metal gravados. A impressão por tipos (tipografia
musical) só desapareceu completamente das casas de impressão por volta de 1960,
segundo verbete de Edmund Poole no The New Grove´s Dictionary of Music and
Musicians (SADIE, 1980). Atualmente, a possibilidade de impressão de arquivos
digitalizados e a possibilidade de bancos de partituras e bibliotecas digitais
(comerciais, privados, de centros de pesquisa ou bibliotecas de domínio público
disponíveis online) permitirem o acesso e a impressão doméstica de seus
arquivos, sejam eles abertos (gratuitos) ou mediante pagamento.
A edição musical é o trabalho de preparação para publicação, e diz
respeito às escolhas feitas na apresentação desse material, principalmente
quando se trata do trabalho de uma outra pessoa que não o compositor.
A publicação musical envolve a obtenção da obra a ser publicada, a
partir de trabalho do compositor e/ou editor, financiamento da impressão,
promoção, publicidade e distribuição das cópias.
Editoração é o trabalho de preparação técnica de originais. Chama-se
editoração eletrônica o conjunto de atividades ou processos de montagem e
apresentação gráfica, realizados por meio de programas e equipamentos
computacionais. Portanto, o trabalho de editoração não se confunde nem com a
edição, nem com a publicação, embora possa gerar uma impressão.
Os quatro termos, portanto,
embora estreitamente relacionados, designam atividades diferentes. Feitas estas
distinções, passaremos a analisar alguns termos ligados à edição musical. O
conhecimento desses termos, e da concepção editorial que neles está envolvida,
tem o objetivo de fazer com que o regente coral possa escolher e utilizar as
edições disponíveis, de acordo com seu objetivo e seu grau de conhecimento de
tal repertório.
Edição Completa,
(Collected Edition, Complete works (Inglês), Gesamtausgabe, Sämtliche
Werke, Werke (Alemão), Opera Omnia (Latim), Oeuvres Complètes (Francês)
Apresentam a obra completa de um autor, em vários volumes, num
empreendimento que pode ser planejado para vários anos. Exemplos: Claudio
Monteverdi – Opera Omnia, J. S. Bach – Werke
Monumenta (Latim), Monumentos
Denkmäler (Alemão), em inglês podem ser também Collected Edition,
Complete edition ou ainda Monuments (também em francês)
Uma edição em vários volumes cujo objetivo é disseminar um repertório
unificado de importância histórica, definidos por critérios nacionais ou cronológicos, por exemplo. Podem utilizar uma
única fonte ou fontes fortemente relacionadas. Exemplos: Musica Britannica,
Monumentos de la música española.
Antologias
Referem-se a publicações históricas de seleções e excertos de fontes
variadas, podem ser pequenas ou grandes antologias. Podem ter finalidade
didática, em nível crescente, podem apresentar a escolha de um editor, podem
ser agrupadas por gênero, nacionalidade, período. Exemplos: Antologia Coral
(Graetzer)
Practical edition, performing edition (inglês)
Edição interpretativa ou de intérprete, edição prática. Muitas vezes
traz apenas o nome do revisor ou intérprete, geralmente um grupo vocal ou
regente conhecido por suas gravações e performances, tidas como modelo para a edição
que leva seu nome.
Este tipo de edição traz informações detalhadas para performance,
incluindo ornamentação, fraseado, articulações, sugestões de instrumentação,
com base no conhecimento estilístico de um renomado intérprete. Este tipo de
edição torna a música acessível a um grande número de músicos, e se constitui
num importante documento sobre a história da interpretação da obra. Muitas
vezes, este tipo de edição não indica as fontes utilizadas, o que torna difícil
a distinção entre adições interpretativas e o texto original do compositor.
Mais recentemente há edições práticas que tomam o cuidado de explicitar a
intervenção editorial, satisfazendo às exigências práticas e, ao mesmo tempo,
às exigências acadêmicas.
Urtext
Literalmente, "texto original", um termo que começou a ser
usado no final do século XIX, como reação às edições interpretativas, que não
permitiam o conhecimento das fontes originais. Designa uma edição que apresenta
a partitura em seu estado original, sem intervenção editorial. O termo foi
comercializado por casas editoras, especialmente G. Henle. Após um período de
grande aceitação, atualmente a ideia de edições Urtext é discutida e
ressignificada, principalmente no sentido de que qualquer edição musical
envolve, necessariamente, a intervenção crítica do editor.
Edição Crítica, Critical edition (inglês)
Uma edição destinada a apresentar, para o estudo e a performance, a
melhor leitura da obra, baseada em fontes originais. Faz uso de técnicas
acadêmicas de crítica textual, incluindo a comparação e transcrição de fontes.
Corrige erros óbvios e apresenta variantes, quando encontradas. Pode incluir um
comentário crítico, também chamado Critical apparatus ou Kritische Berichte
(alemão)
Edição fac-símile (também chamada edição mecânica)
Reprodução de uma fonte original, manuscrita ou impressa, para fins de
estudo ou performance. Embora os fac-símiles tenham tornado disponíveis fontes
difíceis de serem consultadas, eles variam em qualidade, dependendo da técnica
fotográfica empregada. Pode ou não conter comentários adicionais. Às vezes são
incluídos fac-símiles em edições completas de música ou em obras teóricas. Estritamente falando, fac-símiles
não são edições, pois são reproduções de uma edição anterior ou de um
manuscrito. A ampliação dos recursos eletrônicos expandiu enormemente a
quantidade de fac-símiles disponíveis, tanto de fontes manuscritas como de
primeiras edições, ou de edições esgotadas e anotadas.
Outros termos ligados à edição:
Edição diplomática – tentativa de reproduzir todos os detalhes do
original, sem corrigir erros, o mais fiel possível ao original.
Edição exegética – o mesmo que edição crítica
Edição expurgada – são eliminadas passagens julgadas inconvenientes
Edição integral – não abreviada nem expurgada
Edição paleográfica – transcreve exatamente, na grafia original
Edição princeps – a primeira edição, edição príncipe
Edição autorizada – que recebe aprovação expressa do autor ou dos
direitos autorais
Edição atualizada – com acréscimos e modificações
Edição de bolso – em formato pequeno, para estudo
Primeira edição (Erstdruck) – a mais antiga impressão de uma obra
Edição genética – edição
crítica que se centra na gênese da obra e suas transformações, analisando
versões, acréscimos e supressões.
Susana Cecília Igayara-Souza
IGAYARA, Susana Cecília. Estudo de Repertório: informações sobre o
autor e a obra. Material didático de apoio ao curso "Repertório Coral
através das formas fundamentais - CMU0521". Departamento de Música. Escola
de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. Revisão:
2011.
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