A incansável necessidade de
aprender para, depois, transmitir de forma límpida e elegante o que conseguiu
captar ao maior número possível de pessoas levou o jovem Octavio Paz a abordar
o Marquês de Sade ainda nos anos de sua juventude. O curioso e o objeto de sua
curiosidade têm entre si duas semelhanças fatídicas: ambos foram escritores
importantes no panorama da cultura universal, cada um no seu tempo, cada um com
seus temas.
Mas duas fatalidades separam os
dois de forma irremediável e para sempre. Apesar de ter sua obra divulgada, a
ponto de se haver tornado um adjetivo (de seu título deriva a família de
vocábulos que definem o prazer auferido da dor, sadismo, sádico, etc.), o
francês continua sendo um escritor mal lido. Não propriamente por ser um mau escritor,
mas, certamente, por escrever de forma tortuosa e complexa. Ler Sade não é uma
tarefa propriamente sádica, mas, sobretudo, masoquista – seus textos,
engendrados numa língua, a francesa, apropriada aos apuros da elegância
estilística, prometem as delícias do prazer físico e terminam entregando as
penas da dor espiritual. Já Octavio Paz, mesmo escrevendo no idioma barroco por
excelência, o castelhano, escreve com precisão de relojoeiro e estilo de
esgrimista. O texto de Sade é turvo e torturado. O de Paz, límpido e
harmonioso. Num século de grandes prosadores, não é fácil encontrar quem se lhe
ombreie em deleite e profundidade.
O marquês foi um injustiçado –
ou, no mínimo, um incompreendido, pois a distância entre o que inspira a
tradição oral sobre seus textos e a forma que de fato eles têm produziu uma
mitologia que cada vez distancia mais seu leitor da verdade que o autor quis
transmitir. Já de Paz não se pode falar assim. Se teve grande brilho, também
mereceu extenso reconhecimento, que culminou com o Prêmio Nobel da Literatura.
E foi o justiçado Paz quem fez questão de fazer justiça a Sade, dissecando sua
obra, revirando seu pensamento pelo direito e pelo avesso e apresentando-o ao
leitor da forma que conhece como poucos – simples, mas completa; clara, mas
multiforme. O marquês era um homem afável e doce, mas pagou caro pelas
perversões que descreveu em seus textos: foi preso e maltratado, um pioneiro
entre os mártires perseguidos pela ousadia da liberdade de pensar e expressar
seu pensamento por escrito, um habitante do Arquipélago Gulag avant la lettre.
Talvez por haver sido um doce
intransigente, o marquês, síntese de todos os devassos, terminou por instigar o
pacífico e casto poeta mexicano ao longo de toda a sua trajetória de escritor.
Nada melhor do que Paz falando de Paz. Na introdução de Um mais além erótico:
Sade, ele deixou registrados três paradas dessa trilha: “Por volta de 1946,
descobri a figura de Donatien Alphonse François, marquês de Sade e longínquo
descendente de Laura de Sade, cantada por Petrarca. Eu o li com assombro e
horror, com curiosidade e desagrado, com admiração e reconhecimento. Em 1947,
escrevi um poema entusiástico; em 1960, um ensaio, um exame de suas idéias; em
1986, outro ensaio, uma recapitulação do que sinto e penso de sua pessoa e
obra. Este pequeno livro abrange essas três tentativas de entendimento”.
É provável que o próprio poeta,
ao lançar o livro de apenas 120 páginas em tipos graúdos sobre manchas gráficas
menores do que o padrão, tivesse esgotado o assunto. Mas ele o perseguiu até a
confecção, já no fim da vida, de uma obra-prima de mais fôlego e maiores
ambições, A dupla chama: amor e erotismo.
Graças à devoção do editor
Pedro Paulo de Sena Madureira ao autor (que o levou a lançar no Brasil a única
tradução existente no mundo do portentoso ensaio dele sobre Sóror Juana Inés de
la Cruz) e ao trabalho competente e também devotado do tradutor Wladir Dupont,
que mora no México sem nunca haver deixado o Brasil, é possível traçar um
paralelo entre as duas obras. É o caso de dizer que Sade prepara A dupla chama,
como este pressupõe a existência do primeiro. No ensaio que dá título ao livro,
escrito no México em 1960, Paz já deixou claro haver entendido o que
desenvolveria pouco antes de morrer. “A sexualidade”, escreveu, já então, “é
geral; o erotismo, singular”.
Segundo o poeta, “o homem imita
o caráter complexo da sexualidade animal e reproduz seus gestos graciosos,
terríveis ou ferozes porque deseja voltar ao estado natural. E, ao mesmo tempo,
essa imitação é um jogo, uma representação. O erotismo é o reflexo do olhar
humano no espelho da natureza. Assim, o que distingue o erotismo da sexualidade
não é a complexidade, mas a distância”. Para ele, “o ato erótico nega o mundo –
nada real nos rodeia, exceto nossos fantasmas”. E mais ainda: “O erotismo não é
uma simples imitação da sexualidade – é sua metáfora”.
O que aproximou Paz do marquês
foi a descoberta da originalidade do francês, que consiste, em sua opinião, “em
ter pensado o erotismo como uma realidade total, cósmica, quer dizer, como a
realidade”, produzindo aquilo que ele definiu como “uma utopia ao contrário”
(“A sociedade de Sade não é só uma utopia irrealizável; é uma impossibilidade
filosófica – se tudo é permitido, nada é permitido”, arremata). Paz o compara a
Lucrécio, Havelock Ellis e Sigmund Freud, que, de acordo com ele, “abandona o
campo da observação médica para se arriscar na contemplação da vida como um
diálogo mortal entre Eros e Tânatos”.
Seria inútil competir em
clareza e beleza com Octavio Paz. Mais por isso do que para ceder ao comodismo
de simplesmente citá-lo, reproduzo, parcialmente, um parágrafo do miolo desse
pequeno ensaio genial, por acreditar que ele resume o verdadeiro entendimento
sobre a importância da obra de Sade na crítica sistemática do erotismo, que
está presente na criação e na destruição do ser humano.
Ele escreveu: “A supressão da
dualidade criação-destruição, melhor dizendo, sua fusão num movimento que as
abraça sem suprimi-las é mais que uma visão filosófica da natureza. Heráclito,
os estóicos, Lucrécio e muitos outros pensavam da mesma forma. Ninguém, porém,
havia aplicado com o rigor de Sade essa idéia ao mundo das sensações. Prazer e
dor também são nomes, não menos enganosos que os outros. Essa frase é uma mera
variante da moral estóica; nas mãos de Sade é uma chave que abrirá portas
condenadas há muitos séculos. Por um lado, meu prazer se alimenta da dor
alheia; por outro, não contentes com gozar diante dos padecimentos dos outros,
meus sentidos exasperados também querer sofrer. A mudança de signo (o bem é
mal, a criação é destruição) se opera com maior precisão no mundo sensual – o
prazer é dor e a dor, prazer”.
Isso é verdadeiro e também
terrível. No ensaio que escreveu em 1986,Cárceres da razão, Paz foi além: “o prazer
é o agente que guia e move os atos e pensamentos dos homens e das mulheres; o
prazer é intrinsecamente destruidor”. E no poema mais antigo, O prisioneiro,
escrito em Paris em 1947, Paz intuiu o resumo de tudo num verso genial: “O
sonho é explosivo. Estala. Volta a ser sol”.
José Nêumanne
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