Schubert
pode ser considerado o verdadeiro criador da música de confidência pessoal de
todos os poetas líricos do piano
A Grande
fantasia em dó maior D760 é possivelmente a obra mais arrojada e original que
Schubert escreveu para piano. A peça é mais conhecida como fantasia “Wanderer”
(O Viandante), uma vez que foi inteiramente inspirada e desenvolvida a partir
de um dos temas da célebre melodia de igual título. Este tema encontra-se no
centro da obra, formando um adagio de sentimento profundo e de admirável
grandeza. É o ritmo inicial deste tema (uma semínima e duas colcheias) que
engendra toda a Fantasia, impregnando o primeiro e último movimentos e até
mesmo, por contração da célula rítmica, o presto em compasso ternário, que na
obra assume a função de scherzo, num procedimento digno de Beethoven. A
fantasia “Wanderer”, apesar de não ter sido criada estritamente na forma
sonata, está bem mais de acordo com o espírito clássico das sonatas
propriamente ditas.
Para apreciarmos
Schubert em total liberdade, em obras que dão vazão de modo prodigioso às
ideias que nele surgem sem nenhum esforço, devemos recorrer aos Improvisos e
aos Momentos musicais.
Os oito
Improvisos têm uma forma bem definida. Trata-se geralmente de peças que
trabalham duas ideias, sendo que a segunda encontra-se intercalada entre a
exposição da primeira e sua repetição. Dessas duas ideias, uma revela uma
natureza mais melódica e a outra mais rítmica. Uma exceção é o Improviso em si
bemol maior, na forma de tema com variações. Os improvisos são de inspiração
pura e espontânea, refletindo bem a alma de Schubert. Nessas obras nada
encontramos de mórbido ou bizarro, uma vez que elas comunicam a ternura
confiante, uma graça intimista, um sorriso por vezes bem próximo das lágrimas e
uma limpidez de natureza transparente, elementos característicos do compositor.
Os Momentos
musicais são seis pequenas peças em estilo livre, de pequena extensão, nas
quais Schubert contenta-se em expor suas ideias sem desenvolvê-las. As palavras
tornam-se deploravelmente vagas e ineficazes para caracterizar essas pequenas
jóias musicais. Notamos nos Momentos musicais os pensamentos risonhos ou
tristes a que se entrega a imaginação do compositor, numa atmosfera que já
antecipa a expressão interiorizada de Robert Schumann em suas “Noveletten” e na
“Kreisleriana”.
Há que se
mencionar ainda as numerosas sequências de danças; valsas, minuetos, ländler,
écossaises, e que confirmam as palavras de Otto Deutsch ao referir-se que
Schubert se sentia às mil maravilhas na companhia de seus amigos e gostava de
se unir a eles nos bailes vienenses, não para dançar, mas sim para
acompanhá-los ao piano horas seguidas.
Schubert
pode ser considerado o verdadeiro criador da música de confidência pessoal de
todos os poetas líricos do piano.
Ainda
algumas breves palavras sobre a imensa produção schubertiana para piano a
quatro mãos, que inclui uma grande gama de formas: variações, rondós, marchas,
divertimentos, duos e sonatas. Na impossibilidade de comentar minuciosamente
esses tesouros musicais, destacamos o Grande duo em dó maior, escrito em 1824 e
a Fantasia em fá menor D. 940, sendo esta uma obra de notável concisão ao
utilizar o plano da forma sonata em quatro movimentos contínuos de surpreendentes
relações tonais.
A limitação
de espaço nos impede uma consideração mais detalhada de muitas outras obras de
Schubert, que merecem ao menos uma menção, como é o caso das três Klavierstücke
criadas em 1828, dos dois trios, da sonata “Arpeggione” e do quinteto “A
Truta”, trabalhos de fôlego e nos quais a participação do piano é altamente
elaborada e de grande engenhosidade instrumental O mesmo se aplica aos grandes
ciclos de canções como “Die Schöne Müllerin”, “Die Winterreise” e
“Schwanengesang”, nos quais o piano abandona a condição de mero instrumento
acompanhador, equiparando-se em importância e exigência artística à parte
vocal.
Este é o
imenso legado de um compositor que, despojado de qualquer outra ambição,
dedicou-se integralmente ao ofício da arte musical. Otto Deutsch estima que
Schubert faturou durante sua breve existência somente £ 575 com suas
composições. Ao falecer em 1828, seus pertences foram avaliados em 63 florins,
sendo insuficientes para cobrir as despesas do funeral. Dessa quantia, os mais
de quinhentos manuscritos deixados pelo compositor foram estimados em 10
florins. Encontrava-se nesse lote desvalorizado grande parte das obras
comentadas no presente artigo, fato que deveríamos ter sempre em mente todas as
vezes que uma composição de Schubert novamente tocar os nossos corações.
Amaral Vieira
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