terça-feira, 15 de outubro de 2013

A obra para piano de Schubert (Parte 2)


Schubert pode ser considerado o verdadeiro criador da música de confidência pessoal de todos os poetas líricos do piano
A Grande fantasia em dó maior D760 é possivelmente a obra mais arrojada e original que Schubert escreveu para piano. A peça é mais conhecida como fantasia “Wanderer” (O Viandante), uma vez que foi inteiramente inspirada e desenvolvida a partir de um dos temas da célebre melodia de igual título. Este tema encontra-se no centro da obra, formando um adagio de sentimento profundo e de admirável grandeza. É o ritmo inicial deste tema (uma semínima e duas colcheias) que engendra toda a Fantasia, impregnando o primeiro e último movimentos e até mesmo, por contração da célula rítmica, o presto em compasso ternário, que na obra assume a função de scherzo, num procedimento digno de Beethoven. A fantasia “Wanderer”, apesar de não ter sido criada estritamente na forma sonata, está bem mais de acordo com o espírito clássico das sonatas propriamente ditas.

Para apreciarmos Schubert em total liberdade, em obras que dão vazão de modo prodigioso às ideias que nele surgem sem nenhum esforço, devemos recorrer aos Improvisos e aos Momentos musicais.

Os oito Improvisos têm uma forma bem definida. Trata-se geralmente de peças que trabalham duas ideias, sendo que a segunda encontra-se intercalada entre a exposição da primeira e sua repetição. Dessas duas ideias, uma revela uma natureza mais melódica e a outra mais rítmica. Uma exceção é o Improviso em si bemol maior, na forma de tema com variações. Os improvisos são de inspiração pura e espontânea, refletindo bem a alma de Schubert. Nessas obras nada encontramos de mórbido ou bizarro, uma vez que elas comunicam a ternura confiante, uma graça intimista, um sorriso por vezes bem próximo das lágrimas e uma limpidez de natureza transparente, elementos característicos do compositor.

Os Momentos musicais são seis pequenas peças em estilo livre, de pequena extensão, nas quais Schubert contenta-se em expor suas ideias sem desenvolvê-las. As palavras tornam-se deploravelmente vagas e ineficazes para caracterizar essas pequenas jóias musicais. Notamos nos Momentos musicais os pensamentos risonhos ou tristes a que se entrega a imaginação do compositor, numa atmosfera que já antecipa a expressão interiorizada de Robert Schumann em suas “Noveletten” e na “Kreisleriana”.

Há que se mencionar ainda as numerosas sequências de danças; valsas, minuetos, ländler, écossaises, e que confirmam as palavras de Otto Deutsch ao referir-se que Schubert se sentia às mil maravilhas na companhia de seus amigos e gostava de se unir a eles nos bailes vienenses, não para dançar, mas sim para acompanhá-los ao piano horas seguidas.

Schubert pode ser considerado o verdadeiro criador da música de confidência pessoal de todos os poetas líricos do piano.

Ainda algumas breves palavras sobre a imensa produção schubertiana para piano a quatro mãos, que inclui uma grande gama de formas: variações, rondós, marchas, divertimentos, duos e sonatas. Na impossibilidade de comentar minuciosamente esses tesouros musicais, destacamos o Grande duo em dó maior, escrito em 1824 e a Fantasia em fá menor D. 940, sendo esta uma obra de notável concisão ao utilizar o plano da forma sonata em quatro movimentos contínuos de surpreendentes relações tonais.

A limitação de espaço nos impede uma consideração mais detalhada de muitas outras obras de Schubert, que merecem ao menos uma menção, como é o caso das três Klavierstücke criadas em 1828, dos dois trios, da sonata “Arpeggione” e do quinteto “A Truta”, trabalhos de fôlego e nos quais a participação do piano é altamente elaborada e de grande engenhosidade instrumental O mesmo se aplica aos grandes ciclos de canções como “Die Schöne Müllerin”, “Die Winterreise” e “Schwanengesang”, nos quais o piano abandona a condição de mero instrumento acompanhador, equiparando-se em importância e exigência artística à parte vocal.

Este é o imenso legado de um compositor que, despojado de qualquer outra ambição, dedicou-se integralmente ao ofício da arte musical. Otto Deutsch estima que Schubert faturou durante sua breve existência somente £ 575 com suas composições. Ao falecer em 1828, seus pertences foram avaliados em 63 florins, sendo insuficientes para cobrir as despesas do funeral. Dessa quantia, os mais de quinhentos manuscritos deixados pelo compositor foram estimados em 10 florins. Encontrava-se nesse lote desvalorizado grande parte das obras comentadas no presente artigo, fato que deveríamos ter sempre em mente todas as vezes que uma composição de Schubert novamente tocar os nossos corações.

Amaral Vieira

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