A publicação
acadêmica pode ser afetada caso o lobby dos músicos consiga manter a exigência
de autorização prévia para a publicação de biografias na lei brasileira. O
alerta foi feito por juristas e historiadores.
O artigo do
Código Civil que é centro do embate entre autores e músicos se refere à
"divulgação de escritos", hoje mais aplicado à publicação de
biografias. Mas também pode se estender a outras áreas, na visão de
especialistas. "Espero que os artistas não queiram censurar a academia,
mas a interpretação que defendem pode levar a isso. É um efeito colateral
danoso", diz o professor de direito constitucional Joaquim Falcão, da
Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.
Resposta de
Caetano é só uma 'desconversa', diz Benjamin Moser
A
instituição representa o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Supremo
Tribunal Federal. A entidade entrou como "amicus curiae" (interessado
na causa) no Supremo, integrando uma ação proposta por editores que questiona a
constitucionalidade da norma vigente.
Caetano,
Chico e Gil, além de Roberto Carlos, Milton Nascimento, Djavan e Erasmo Carlos,
integram o grupo Procure Saber, que defende a exigência de autorização prévia
para a publicação de biografias, além de pagamento ao biografado.
"A
ciência precisa da publicação dos seus resultados para serem contestados",
afirma Falcão.
O documento
que explica o posicionamento dos historiadores e que foi submetido ao Supremo
usa a história de Tiradentes (1746-1792) como exemplo. O historiador Joaquim
Norberto de Souza Silva (1820-1891) publicou obra questionando o papel
desempenhado pelo "herói" da Inconfidência Mineira. Em seu trabalho,
diz que Tiradentes não teria morrido como um patriota, mas como um frade.
"Imagine-se
que os descendentes de Tiradentes, invocando o artigo 20 do Código Civil,
possam requerer a proibição de todas as obras que não retratem Tiradentes como
o 'protomártir da independência do Brasil'? Tal cenário seria absurdo, e uma
afronta à liberdade acadêmica, de ensino e de informação, pois os professores
só poderiam retratar o Tiradentes que a família dele escolhesse", diz o
memorial.
"Isso
pode criar dificuldades grandes para os historiadores e prejudicar imensamente
a historiografia nacional", diz o diplomata e historiador Alberto da Costa
e Silva, imortal da Academia Brasileira de Letras. "A formação de
documentos contemporâneos fica prejudicada".
DISSERTAÇÃO
Em abril, os
advogados de Roberto Carlos enviaram uma notificação extrajudicial pedindo a
interrupção das vendas de "Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude"
(Estação Letras e Cores), de Maíra Zimmermann.
O livro,
resultado do mestrado da autora, trata da relação do movimento com consolidação
da cultura juvenil no Brasil nos anos 1960.
A
notificação alegava que a obra trazia "situações que envolvem o
notificante e detalhes sobre a trajetória de sua vida e intimidade".
Zimmermann
enviou uma contranotificação ao escritório de Roberto, informando que a obra
não tratava da intimidade do cantor e que se baseava principalmente em arquivos
dos anos 1960.
Na ocasião,
a repercussão negativa fez os advogados de Roberto desistirem de impedir a
circulação da dissertação de mestrado, que saiu com tiragem de mil exemplares.
O professor
Ivar Hartmann, também da FGV-Rio, aponta danos que a lei pode causar para a
academia no futuro.
"O
problema não é só quando as normas proíbem a publicação de uma pesquisa
acadêmica, é quando inviabilizam aos pesquisadores terem acesso a fontes, como
artigos e biografias que deixaram de ser publicados. Quantos anos nós já
perdemos de pesquisa?", questiona.
ARGUMENTOS
Em artigos
publicados no jornal "O Globo", Chico Buarque e Caetano Veloso fazem
menção à história da novelista Glória Perez, que, em 1995, tirou de circulação
um livro sobre o assassinato de sua filha escrito pelo autor do crime. Chico
diz que o procedimento foi possível "graças à lei que a associação de
editores quer modificar".
Mas o fato
se deu antes da existência do Código Civil, lei sancionada pelo ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso em 2002.
"O que
o Código Civil fez foi piorar uma situação que já não era boa. A norma
potencializa a tradição da Justiça brasileira de minar a liberdade de
expressão", afirma Hartmann.
Colaborou
RAQUEL COZER
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