O poeta e
compositor morreu alguns meses depois de ter concedido a entrevista ao
jornalista Narceu de Almeida Filho, em 1979
Quando o
jornalista Narceu de Almeida Filho bateu este longo papo com Vinícius de
Moraes, em sua casa, bem situada numa tranquila rua da Gávea, no Rio de
Janeiro, não poderia imaginar que, no momento da edição da entrevista, o
Poetinha já não existisse mais. Vinícius estava todo animado, layout novo, de
cabelos cortados, barba raspada, vestido elegantemente e sem o seu famoso boné
que o acompanhou durante muitos anos. Havia emagrecido vários quilos e
abandonado temporariamente as excursões musicais para dedicar-se, novamente, à
poesia. Poeta do amor, Vinícius estava ainda em lua-de-mel com sua mulher,
Gilda, a quem conheceu na Europa, onde ela estudava. Entre pilhas de livros,
discos, um violão, dois conjuntos de som e objetos de arte, ele falava de seu
objetivo maior no momento — “fazer feliz essa moça” — e olhava,
apaixonadamente, para a mulher sentada ao seu lado. A entrevista foi publicada
no livro “As Entrevistas de Ele Ela”, editora Bloch.
Vinícius,
você andou meio desaparecido, ultimamente, viajando muito. Como você está agora?
Eu estou
bem, de um modo geral. Tenho uns problemas de dieta, para regularizar o
metabolismo do meu açúcar, que é um pouco alto. Agora vou tirar umas férias e
passar um mês em Punta del Este, dar uma descansada e terminar meus livros de
poesia, que estão parados há quatro anos por causa desse negócio de shows.
Foram quatro anos de pauleira o tempo todo, muita viagem, principalmente no
Brasil e na Argentina, mas também na Europa. No ano retrasado estivemos na
Itália e de novo no Olympia, em Paris. Agora fizemos mais ou menos o mesmo
roteiro e incluímos Londres, onde eu não havia trabalhado ainda. Para mim foi
uma surpresa muito boa, porque o show teve bastante sucesso. Do ponto de vista
profissional, o ano foi ótimo, ainda que tenha me deixado um pouco de língua de
fora… Mas tudo bem.
E agora você
entra em férias para trabalhar?
É, férias
para ver se escrevo um pouco. Esses livros estão realmente muito atrasados.
Quais os
livros?
São dois
livros. Um deles é o que venho escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25
anos que trabalho nesse livro. O outro são os poemas escritos de 1960 para cá,
porque nesse tempo todo eu não publiquei nada de poesia, a não ser algumas
edições especiais que fiz na Bahia, na editora do Calazans Neto. Uma delas é a
“História Natural de Pablo Neruda”, que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir
esses poemas escritos a partir de 1960 e completar o livro, que tem um título
meio contabilístico — “O Dever e o Haver”. É uma prestação geral de contas, do
que foi feito, do que deixou de ser feito.
Esses dois
livros que você vai publicar serão, em termos de poesia, a sua palavra final?
Eu considero
esses dois livros uma espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se
ainda tiver alguma coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do
contrário, eu paro de escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que
foi dito foi dito, e é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo
de importante a dizer. E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por
escrever, simplesmente, é uma coisa que não farei em hipótese alguma.
Você tem
algum método de trabalho permanente, periódico, ou escreve somente quando baixa
a inspiração?
É, eu
escrevo somente quando a coisa vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30
anos, em que eu escrevia muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o
papel e sentar para escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois
começou a escassear, a rarear. E veio o período de música popular, que foi
muito importante para mim.
Você ficou
famoso como poeta muito cedo, antes dos 20 anos, não foi?
Muito cedo.
Meu primeiro livro, “O Caminho Para a Distância”, teve uma ótima crítica. Eu
tinha 19 anos quando o publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de
Poesia — chamava-se Felipe de Oliveira e premiava todas as artes literárias.
Ganhei uma disputa com o Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente.
O fato de
ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para você?
Para mim não
foi muito legal, não, sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um
poeta genial, essas coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no
meu lugar, direitinho. Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro
livro. Ele fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz:
“Olha, menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito
bons”. Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa.
Finalmente, quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa
escreveu também um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O
Mário de Andrade, igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me
ajudou muito.
Na época
você recebeu bem essas críticas?
Não recebi
muito bem, não. Recebi mal, sabe. Porque, além do mais, havia todo o grupo do
Otávio de Farias que me incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o
poeta que todo mundo esperava. Era o grupo da faculdade de Direito. Essas
coisas me subiram um pouco à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida,
a experiência com o conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me
situar. Processou-se também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido
formado para ser um intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa
muito importante em minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano
Waldo Frank. O José Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores
compareceram. Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que
achava coquetel de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não
podíamos sair por aí. Saímos, era dia de São Jorge e eu levei o Waldo para ver
as putas do Mangue. Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a
origem da minha “Balada do Mangue” foi esse dia. Depois eu o levei à favela do
Pinto, aquela que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não
há condições. Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas
para os crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo
era ver esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a
Argentina, acabou se envolvendo em política lá — era um socialista, mas com uma
grande dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do
Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma
tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e
pediu ao Oswaldo Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para
acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do
Itamaraty, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na
carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem
foi maravilhosa, escutei histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi
martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha
vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinham vindo matá-lo
no Brasil.
Até essa
época você era bastante católico e místico, não?
Não era tão
católico, não, mas era um cara muito mistificado, não só pela formação, mas
também pelo grupo que orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos caras
de direita, muitos haviam aderido ao integralismo. Não sei como consegui me
safar disso. Acho que foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa.
Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada.
Saí um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto
a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria
espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o
sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.
Essa virada
se manifestou em sua obra?
Logo em
seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa. No Brasil, pouca
gente havia tido essa experiência com exceção de Gilberto Freyre, que também
estudou em Oxford. Para mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito
importante, especialmente no sentido de certa simplificação e desmistificação e
todo aquele arcabouço aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo.
E quando
você começou a fazer música?
A música
começou mesmo na década de 1950, quando voltei de meu primeiro posto
diplomático no exterior, em Los Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas,
antes, mesmo sozinho, mas sem nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15
anos tive uma experiência interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que
havia aqui, chamada Irmãos Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias
músicas, das quais duas tiveram muito sucesso. Uma era um foxtrote brasileiro,
chamado “Loura ou morena” (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma
“berceuse”, “Canção da amante”. Foi o primeiro dinheiro que ganhei em minha
vida, produzido por essas músicas.
Quando você
foi exonerado do Itamarati, em 1968, houve alguma alegação específica?
O Otto (Lara
Resende) sabe de uma história muito engraçada que aconteceu: quando o decreto
veio de Brasília, assinado pelo presidente Costa e Silva, o despacho dizia:
“Ponha-se esse vagabundo para trabalhar”. Aí, dizem que o Magalhães Pinto botou
a mão na cabeça e chamou o Otto imediatamente, comentando: “Ih, isso vai dar um
barulho dos diabos. Escreve um arrazoado aí para mandarmos para Brasília”. O
Otto escreveu e, por isso, o despacho não se tornou público. Mas a exoneração
veio de qualquer maneira. O que para mim foi ótimo, porque eu já não aguentava
mais aquilo, mas tinha um problema moral devido aos filhos, pois com 24 anos de
carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha certo medo de
jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral,
fiquei muito satisfeito.
Voltando à
música: você teve parcerias históricas. Por que lá pelas tantas, a parceria
acaba?
É como um
casamento, sabe. É parecido. Acho que há um desgaste. Além disso, no tempo da
bossa-nova, por exemplo, havia milhares de compositores fazendo música, e
apenas uns poucos letristas. De maneira que eu não chegava para as encomendas:
era o Tom, o Baden Powell, o Carlinhos Lyra. Depois, na geração 1963, pintaram o
Edu Lobo, o Francis Hime. Tanto assim que eu sou um dos pouquíssimos
compositores brasileiros que atravessou essas gerações todas. Eu fiz música com
o Pixinguinha, o Ary Barroso, com o pessoal da geração do Antônio Maria, o
Paulinho Soledade; depois peguei o Tom, o Baden, o Carlos Lyra, o Edu, o
Francis e, em 1969, o Toquinho. E mesmo com caras mais jovens que o Toquinho eu
já fiz música, como o Eduardo Souto Neto, o João Bosco.
Com quais
parceiros você acha que houve mais criatividade?
Com o Tom,
sobretudo, mas também como o Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção
muito boa, e foi ele quem me introduziu o elemento africano, o que não havia
antes na bossa-nova — eram todos brancos, arianos.
O que você
acha das críticas que o Tinhorão faz à bossa-nova?
Aquilo é
burrice total do Tinhorão. É o negócio dos guarda-costas do samba. Como existe
também, aliás nos Estados Unidos, com relação ao jazz. Lá tem cara que acha que
a música só é jazz se for tocada com aquelas cornetas dos confederados. Se não
for, não é puro. E tem que ter também a tábua de lavar roupas (washboard)
verdadeiras, para marcar o ritmo. É muito sectarismo. Embora seja um excelente
pesquisador, o Tinhorão tem esse lado insuportável.
Você acha
que a influência do jazz foi boa para a bossa-nova?
Acho que foi
uma influência muito boa. No samba tradicional, os instrumentistas não
improvisavam, em geral as harmonias eram rígidas, as formações eram standard.
Com a influência do jazz, abriu tudo isso, você podia introduzir qualquer
instrumento num conjunto de samba, os instrumentistas improvisavam, as
harmonias melhoraram muito e se enriqueceram, os instrumentistas tornaram-se
excelentes e conheciam profundamente seus instrumentos, como é o caso de Baden
e Tom. A influência foi benéfica porque houve uma descaracterização de nossa
música. O samba estava sempre presente na bossa-nova. Além disso, a bossa-nova
trouxe mais alegria e bom humor à nossa música, que andava muito voltada para a
tristeza, a dor de corno, a fossa, naquela época do Antônio Maria. Com a
bossa-nova a coisa ficou mais sadia, mais otimista, os sentimentos eram mais de
comunicação, mais legais.
Depois da
bossa-nova, o que houve de mais importante na música popular brasileira, em sua
opinião?
Da chamada
geração de 1963, tivemos dois nomes importantes, que são o Francis Hime e o Edu
Lobo, o primeiro mais urbano, o segundo pesquisando coisas de Pernambuco.
Depois veio o Milton Nascimento, pesquisando a toada mineira. O que se perdeu
foi aquela organicidade que havia no movimento da bossa-nova.
E os
baianos, Caetano e Gil?
Os baianos
já são outro esquema, um negócio mais próximo da geração dos Beatles. Eles
quiseram misturar esse troço todo, fizeram o tropicalismo, rock e samba. Acho
que os dois são compositores muito bons. Talvez eu goste mais das coisas
iniciais deles, embora ache que até hoje continuam a fazer bons trabalhos.
E o Chico
Buarque?
O Chico eu
acho fora de série, realmente. Esse tem aquela estrela, um talento que não pode
ter mais tamanho. E o Chico é bom de letra, é bom de música, sabe cantar. Tem
tudo, o cara. São uns poucos casos isolados que existem na música brasileira —
um Noel, um Caymmi, um Chico, que se distinguem muito.
O que você
acha desse debate que tem havido atualmente nos meios artísticos brasileiros,
com a cobrança de definições políticas por parte de artistas pelas chamadas
patrulhas ideológicas?
São pequenas
desavenças ideológicas para as quais eu não dou a menor importância. Acho uma
burrice o artista ser engajado politicamente e fazer uma música ruim — isso não
tem o menor valor. O que adianta você ser o maior comuna e fazer sambas ruins?
Aí eu acho que seria preferível ser alienado e fazer música boa. Acho que o
engajamento político o cara só deve ter quando aquilo é tão importante para ele
que passa a ser sua própria razão de existir, ele não pode viver fora daquilo.
É um compromisso que assume consigo mesmo e com a sociedade, e ponto. Eu tenho
um envolvimento político bastante grande, mas nunca o expressei em minha
poesia, exceto quando surgiu como uma coisa válida, como em “Operário em
construção”, “Os barões da terra” e “Mensagem à poesia”. Mas são bons poemas.
Eu fiz também muita coisa política que era uma merda e joguei fora.
Como foi seu
encontro com Deus e depois seu desencontro, seu desencanto?
Bom, o
encontro foi normal: família católica, colégio de padres, aquele negócio de
confessar aos domingos, de comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era
maior. As confissões eram sempre as mesmas: “Bati três esta semana, bati
quatro”. Os castigos também eram os mesmos, de modo que aquilo acabou me
cansando, me aporrinhando. Mas eu me meti a católico porque toda aquela fase de
direita era muito ligada ao problema de Deus, principalmente por causa da
influência do Otávio de Faria. Ele era aquele cristão dramático, lia muito
Pascal, Claudel, os filósofos sofredores, me deu os primeiros livros para ler.
Até hoje eu tenho uma grande admiração e estima por ele, embora as divergências
ocorridas fossem graves demais para permitir que mantivéssemos um relacionamento
estável. Mas gosto muito dele, quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em
frente, me liguei muito ao Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham
uma consciência cristã, mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns
eram francamente agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um
desinteresse que acabou sendo total. Eu não acreditava mais.
Hoje você
não tem mais qualquer preocupação com o problema de Deus ou de religião?
Num plano
assim de vida, não. Restou talvez certa religiosidade, própria de meu
temperamento. Por exemplo, eu me interesso por candomblé, certas superstições.
Isso é sinal de que tem algum fogo na cinza. Mas aqui, na cuca, não tenho mais
grandes indagações. Ao mesmo tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso
mais por coisas que não sei explicar.
Você andou
muito metido com candomblé na Bahia. Você acredita mesmo nisso?
Eu prefiro
acreditar do que não acreditar, mas realmente não acredito. Quando penso de
modo puramente cerebral, não acredito. Deixei também de fazer aquele gênero de
indagações, olhar para o céu e perguntar: “Onde está Deus? Afinal alguém fez
esta merda toda, não foi?” Mas jamais vou ter respostas a essas perguntas, a
não ser talvez depois da morte. Mas também não sei o que há do outro lado, de
modo que não penso mais nessas coisas. Além disso, à medida que fui perdendo a
religiosidade e o misticismo, o ser humano cresceu muito em mim, tomou conta de
tudo. O que me interessa hoje é gente.
E a morte?
Bem, a morte
sempre me preocupou, e ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais
simples, como uma espécie de saudade da vida, uma pena de deixar isso aqui com
todas as cagadas e confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande
plenitude. Sobretudo por causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei
que a velhice pode ser uma coisa legal, mas não gosto da ideia de envelhecer
porque perderia tudo o que as mulheres ainda podem me dar.
Você nunca
conseguiu, ou quis, viver sozinho, não?
Não. Eu
aceito a solidão bem, mas não por muito tempo. Realmente, para mim, a mulher é
um ser indispensável. Não posso viver sem mulher. Houve uma época de minha vida
que achei que esse negócio havia terminado, que as coisas não estavam dando
certo, que talvez fosse melhor eu me isolar e parar de brincar com esse bicho
tão perigoso. Mas não deu. Não deu mesmo. Eu sou um namorador inveterado.
Você vê
muita diferença entre o Vinícius dos 18 anos e o Vinícius de hoje?
Não vejo
muita diferença entre os meus sonhos de ontem e de hoje, entre certa parte
lúdica que sempre tive, sempre em fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do
que sonhava antigamente. Quer dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de
um dia ou um momento, com paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de
descrença.
Você está
satisfeito consigo mesmo?
Bem, eu
gostaria de mudar algumas coisas de mim, mas de um modo geral não sou um
sujeito de jogar fora. Tenho uma estima por mim bastante grande, sabe. Uma
estima que vem da constatação das coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos
amigos que tive e tenho. Considero tudo conquistas consideráveis, no cômputo
geral. Às vezes tenho a imodéstia de dizer a mim mesmo: “Você vale a pena”.
Isso sem nenhum sentimento de vaidade. Não tenho qualquer preocupação com a
glória literária. Se tivesse essa preocupação, eu trataria muito melhor das
minhas coisas. A publicação de antologia dos meus poemas pela Aguilar (editora)
foi um dos partos mais difíceis e demorados que já houve, tudo por
despreocupação minha. Hoje em dia tenho uma preguiça enorme de trabalhar,
escrever.
Você se
tornou mais exigente?
Muitíssimo
mais exigente. Hoje eu leio muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas
me parece ruim. Atualmente, quando encontro um escritor que me interessa, para
mim é uma festa. Mas, em geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou
cinco páginas.
Qual era a
visão que você tinha do Brasil quando começou a fazer poesia?
Eu achava o
Brasil um país ideal, realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos.
O primeiro choque que o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados
Unidos, em 1951, e vi aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o
bar vermelhinho desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a
penetração do estilo de vida americano.
E hoje, como
você vê o Brasil?
Eu digo
sempre uma coisa: tenho uma grande fé no Brasil. Uma fé meio estúpida, meio
instintiva, por causa do povo. Realmente, a minha fé no Brasil não vem das
instituições, nada disso. Pelo contrário, acho que elas têm sido extremamente
negativas para o país. Agora, eu acredito neste povo. E cada vez que eu volto
ao Brasil, de alguma viagem ao exterior, essa crença aumenta, compreende. E
como essa crença é um bem gratuito, eu prefiro tê-la a não tê-la.
Que tipo de
sociedade você gostaria que houvesse no Brasil?
Acho que uma
volta a uma democracia relativa já seria muito bom! O povo ter liberdade — isso
me parece fundamental. Quer dizer, ver as pessoas felizes, contentes, com as
caras alegres, sem angústia. E, sobretudo, haver a realização, ou pelo menos um
arremedo de realização, de uma organização social mais justa, com uma melhor
distribuição da riqueza, uma reforma agrária legal. Isso eu gostaria de ver: os
problemas sociais mais graves resolvidos ou, no mínimo, colocados num bom
caminho. Isso já me daria um pouco de paz, de calma, de uma tranquilidade
bastante maior do que aquela que eu tenho hoje. Eu não consigo me destacar do
problema humano.
Já falamos
de seus casamentos com parceiros musicais. E com os seus casamentos de verdade,
quantos foram?
Estou agora
no meu nono casamento.
Há quanto
tempo?
Há três
meses. A Gilda vivia na Europa, era estudante lá. É uma moça ótima,
maravilhosa. Eu tinha saído de um casamento também muito bom, muito feliz, com
aquela moça argentina, a Martinha. Mas ela estudava na Argentina, o que nos
obrigava a viver numa verdadeira ponte aérea. Não deu para continuar.
Você diria
que suas mulheres influenciaram sua obra?
Bom, todas
foram premiadas, né. Todas ganharam poemas, canções, uma coisa ou outra.
Houve alguma
que tivesse exercido uma influência maior sobre o nível de seu trabalho?
Nesse
sentido, acho que a influência maior foi a Tati, minha primeira mulher. Quando
me casei com ela, eu estava começando a me desgrudar de minhas influências
direitistas. Havia ainda muita confusão mental em mim, muita influência da
minha formação, muito colégio. E a Tati já era uma pessoa bastante
progressista. Mas, no começo, ainda quebrávamos um pau firme em discussões
políticas. Depois, o relacionamento melhorou em todos os sentidos, inclusive no
político, porque houve também aquela minha viagem pelo Brasil.
Seu
casamento mais longo durou quanto tempo?
Onze anos.
Foi exatamente esse, o primeiro, com a Tati.
E o mais
curto?
O mais curto
durou um ano.
Você mantém
boas relações de amizade com as ex-mulheres, ou é do gênero que rompe relações?
Com a
maioria, mantenho boas relações; mas não com todas. O relacionamento foi pior
com as que engrossaram durante a separação, especialmente com duas que
engrossaram mesmo, para valer.
Com sua experiência,
o que acha mais fácil: conquistar e casar-se com uma mulher, ou separar dela?
O difícil é
separar. Casar é facílimo. Separar é sempre uma experiência dolorosa, porque
são duas pessoas que vivem juntas, amam juntas, têm aquele contato diário. Isso
tudo forma uma espécie de hábito, uma coisa que não é mecânica — quando existe
amor, é claro. E, se há amor, é sempre muito dolorosa a separação.
Como foi sua
iniciação sexual? Poética, traumática, normal?
Foi o normal
de menino da minha idade, de seus 13 anos. Foi na rua Rio de Janeiro, em Belo
Horizonte. Tudo providenciado por um tio meu. Foi com uma putinha, né, uma
menina de 14 anos ou 15.
E
correspondeu às suas expectativas?
Ah,
correspondeu plenamente. Foi uma experiência muito boa. Depois o filho da puta
inventou que eu tinha deixado a menina grávida. Eu tinha aquela ingenuidade de
garoto e acreditei piamente; fiquei apavorado. Ele era um homem de muito mais
idade, andava com um grupo de boêmios, era um seresteiro. E me dizia que eu ia
ser obrigado a me casar.
E como foi
aquela história de um amor fulminante que nasceu numa sala de museu, entre você
e uma jovem loura que se viam pela primeira vez?
Era uma
exposição de Portinari. A menina era muito interessante, uma graça. Eu dava uma
olhada num Portinari e outra nela. E ela também. Eu sei que viemos de lados
opostos e, quando a gente se encontrou, foi até um troço emocionante. Eu falei
assim: “Eu te amo sabe?” Ela começou a chorar. Aí, pronto. Ela estava noiva,
mas acabamos tendo um romance que durou um ano mais ou menos.
Quais os
principais planos para o futuro?
Meu plano
principal, no memento, é fazer essa moça feliz, a Gilda. Quero aprimorar esse
relacionamento conjugal até ele se tornar uma coisa muito sólida. Para mim,
seria um terrível desgaste ter de me separar novamente e procurar outra mulher.
Inclusive estou chegando a uma idade em que isso fica cada vez mais difícil.
Então, gostaria que a Gilda fosse realmente a última. E quando falo última,
falo: “Que ela fosse a primeira”. A Gilda tem as qualidades para isso.
Naturalmente, vai chegar um dia em que teremos de nos separar por problemas de
idade. Mas quanto a esse problema, não posso fazer nada. É um problema da vida,
sou mito mais velho que ela, uma moça bastante jovem. Mas como sou um sujeito
muito dialético, procuro resolver os problemas na hora. Não penso muito neles
antes que pintem.
Além desse
plano principal, você tem outros?
Bem, estou
um pouco saturado de shows, excursões, música. Vou terminar esses dois livros
de poesia e procurar viver minha vida dentro de uma felicidade possível. Se
você me perguntar se sou um homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou
porque não sei ser feliz dentro de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse
é um problema que me afeta diretamente, me afeta não só como homem de esquerda,
mas também como homem, simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu
vou carregar pelo resto de minha vida, não há saída, porque não tenho a menor
esperança de ver as coisas se normalizarem e se equilibrarem ainda no meu
tempo.
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