quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Revolução Francesa na Música.

Durante a Revolução Francesa, a prática musica foi sacudida por transformações radicais, ao influxo de acontecimentos subvertendo pela base a sociedade francesa.
Não há exemplo anterior de movimento social que tenha gerado, em menos de dez anos, tantas narrativas ilustradas por músicas, textos e imagens, exaltando, comentando ou criticando personagens, situações e eventos. Foram repertoriadas mais de 2 mil canções populares, muitas com versos sobrepostos a melodia preexistentes.
Compositores de origem erudita criavam hinos à Razão, à Arvore da Liberdade, à Igualdade, à inauguração de Templos de Liberdade e do Ser Supremo, além de celebrar vitórias militares e feitos heróicos. Essas celebrações ocorriam durante grandiosas festas cívicas, de cunho moralizador e educativo, voltadas para o povo e realizadas em grandes espaços, exigindo centenas de instrumentistas e coristas. O cravo e as cordas tronaram-se impraticáveis e deram lugar aos sopros, que, aliados ás percussões, definiram a formação das bandas de música, cuja potência sonora foi incrementada com a invenção de novos instrumentos.
O predomínio dos sopros contribuiu para a sua maior importância na música do século XIX. Melodias e harmonias diretas, simples, facilmente perceptíveis e memorizáveis pelas massas, substituíram as sutilezas e aos maneirismos da música das cortes, visto como “efeminados”.
As efusões líricas e sentimentais, louvando os feitos revolucionários, conviviam com obras onde dominava um acento heróico (vide a Marselhesa), que desaparece com o golpe de estado napoleônico. A demanda de músicos para as festas cívicas, em Paris e nas províncias, levou a fundação, em 1782, do que viria a ser o Conservatório de Paris.
Cherubini, Paisiello, Méhul, Grétry, Dalayrac, Lesueur e outros músicos de menos expressão prestaram serviços à causa musical revolucionária. O mais importante músico do período, porém, foi o longevo François-Joseph Gossec (1734-1829), protegido de Rameau, que estreou sinfonias de Haydn em Paris e se identificou totalmente com as ideais revolucionários. Sua “Marche lúgubre” de 1973, é apontada como inspiração para o segundo movimento da “Eroica”; é visível sua influência na Grande Synfhonie fúnebre et trionphale, de Berlioz, compositor cujo o passionalismo é impensável sem o dramatismo da herança revolucionária. O último movimento da Sinfonia Fantástica é uma delirante transposição dos trágicos desfiles de carroças levando condenados à guilhotina. Na França do século XIX, a intensa criação de orfeões escolares, não dependentes de repertório sacro, é tributária das movimentações corais revolucionárias e se espalhou pela Europa, repercutindo, inclusive, no Brasil, a partir do anos 1910, com o pionerismo de Jão Gomes Jr. e de Fabiano Lozano em São Paulo e em Piracicaba, continuado por Villa-Lobos a partir de 1932. É, talvez, esse movimento coral laico, com bases na Revolução, que originou o grande mito do coro como vos da nacionalidade.
Uma das preocupações maiores da Revolução era a de unir e mobilizar o povo em torno de um projeto comum. Mais do que a poesia, o teatro, as artes plásticas, a musica foi vista como veículo para difundir os ideais de fraternidade, igualdade, liberdade; ela criaria uma vibração coletiva que supriria a dificuldade de apreensão intelectual desses conceitos.
Em 1796, quando a maior parte das composições revolucionárias já havia sido criada, um teórico chegou afirmar que a música com texto apropriado contribuía para definir o código moral da República e, citando Platão, defendeu o banimento da música puramente instrumental, com exceção das marchas militares e danças em festas populares. Os compositores não foram, porém, obrigados a de adequar a esse ideário, nem foram perseguidos por não segui-lo. A doutrinação revolucionária se diferenciava, na prática, da exercida sob o nacionalismo-socialismo ou sob o realismo socialista, apesar de um fundo comum de arte utilitária permeando esses ideários.


Flávio Silva

Pesquisador em música

(Revista Concerto, julho 2009 – Opinião – pág 12)

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