quarta-feira, 12 de junho de 2013

Pescaria na Megalópole - As insuspeitadas semelhanças entre a Virada Cultural, em São Paulo, e uma vila de pescadores no Nordeste


Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural – que chega à nona edição – mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival des Allumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.

Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre ¬Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um coman¬do¬ e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído¬ pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Em sua conferência, Heidegger salientou a impossibilidade de o homem tornar-se senhor absoluto da técnica, pois algo sempre lhe escapará. Para Pompeia, a Virada Cultural é um desses escapes. O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. Durante 24 horas, São Paulo tem a chance de pescar o peixe com as próprias mãos.


André Toso

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