quinta-feira, 18 de julho de 2013

Repertório Coral: Alguns aspectos sobre a Edição de Música


 
Os regentes corais têm hoje à disposição um imenso acervo de obras, ao menos potencialmente.  Este acervo abrange culturas diversas, um largo período de tempo, que se amplia cada vez mais em direção ao passado, e ainda uma grande diversidade de gêneros, das manifestações da cultura letrada aos universos populares transmitidos originalmente por tradição oral, incluindo também as manifestações populares urbanas transmitidas preferencialmente pelos meios de comunicação de massa.
            Essa multiplicidade sonora, cultural e linguística que forma o amplo espectro do repertório coral à disposição do regente comum, aqui no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, é transmitida, perpetuada e renovada pelo mercado editorial, que por sua vez existe graças ao estabelecimento de um código de notação de música que se tornou um padrão comum entre países de culturas diversas. É através desse código, a notação musical, que esse enorme repertório pôde ser compartilhado, inclusive nas bases de dados e bibliotecas digitais.

            Associada à notação musical, estão as transcrições fonéticas (outro código compartilhado) e as tabelas de aproximações fonéticas, com comparações entre os sons da língua original e os sons da língua do público a que se destina a edição, como elementos auxiliares na ampliação do repertório para além das fronteiras nacionais e linguísticas. Em termos da nova cultura digital, que aos poucos se impõe, já é possível comparar rapidamente as edições disponíveis com exemplos sonoros (em áudio ou vídeo), inclusive com relação à pronúncia por falantes nativos, o que já vêm sendo explorado por editoras musicais que publicam materiais impressos, mas oferecem arquivos sonoros na internet.
            A publicação de música é parte da história social, e passou a existir em função de alguns fenômenos históricos que ocorreram a partir da Renascença: a invenção da imprensa, o crescimento do capitalismo, que propiciou que a publicação de música se tornasse um negócio lucrativo, e a existência do compositor e dos músicos profissionais, o que tornou a publicação de música uma necessidade.  

            A expansão do repertório, portanto, esteve ligada aos interesses da expansão comercial, estabelecida por um mercado supranacional (o que foi conseguido graças ao código de notação musical, como já expusemos) e sujeita às legislações nacionais e internacionais que regulam os direitos autorais das composições musicais e dos textos utilizados na música vocal, incluindo a cessão desses direitos às casas editoras.
            As dificuldades de acesso às partituras, que foram um problema constante na prática coral brasileira durante o século XX, estiveram ligadas às dificuldades de aquisição de material (principalmente considerando que grande parte desse material depende de importação) e às dificuldades linguísticas, no caso de edições que não se dirigem diretamente aos falantes do português.

Mesmo quando nos referimos às edições feitas no Brasil, continuamos tendo problemas de acesso, ou mesmo de conhecimento do que há editado, pois a rede de distribuição e divulgação das edições nem sempre é eficiente, embora estejam sendo criados mecanismos cada vez mais eficazes por grupos de interesse, utilizando as ferramentas que deram origem ao conceito de “redes sociais” e que agora começam a ser utilizadas também por comunidades acadêmicas e artísticas.
A existência de um mercado fraco, ou quase inexistente, em termos de edição de música coral, fez com que grande parte da música publicada no Brasil  durante o século XX estivesse ligada a programas públicos, através de fundações culturais, secretarias, ministérios e universidades, que nem sempre investiram na divulgação, na distribuição e na promoção de reedições, pois muitas vezes essas edições foram fruto de projetos de incentivo e não de investimentos comerciais. Os movimentos editoriais mais fortes, pensando no canto coral, aconteceram naqueles momentos em que se combinaram políticas de Estado, divulgação institucional e edições bem dirigidas e comercializadas a preços acessíveis, como aconteceu na época de Villa-Lobos com o Canto Orfeônico ou no Projeto Villa-Lobos da Funarte.

Reflexões sobre o significado histórico e social da publicação de música fazem parte da reflexão mais ampla sobre a profissão de regente coral, sobretudo para o regente em formação. Este texto, portanto, tem o propósito de situar regentes, educadores e pesquisadores diante do tema amplo que é o da publicação e edição de música, para que a busca de repertório para as diversas práticas corais possa estar ligada a um conhecimento mais preciso sobre os tipos de edições disponíveis e sua adequação ao projeto prático em questão.
                        Impressão, Edição, Publicação, Editoração

Os termos que usamos possuem, às vezes, significados dúbios. Antes de iniciar uma discussão mais aprofundada sobre materiais disponíveis, convém esclarecer alguns termos.
Impressão é a técnica de produção de muitas cópias idênticas, a partir de um original. Os processos iniciais de impressão utilizavam a superfície plana da madeira, pedra ou metal gravados. A impressão por tipos (tipografia musical) só desapareceu completamente das casas de impressão por volta de 1960, segundo verbete de Edmund Poole no The New Grove´s Dictionary of Music and Musicians (SADIE, 1980). Atualmente, a possibilidade de impressão de arquivos digitalizados e a possibilidade de bancos de partituras e bibliotecas digitais (comerciais, privados, de centros de pesquisa ou bibliotecas de domínio público disponíveis online) permitirem o acesso e a impressão doméstica de seus arquivos, sejam eles abertos (gratuitos) ou mediante pagamento.

A edição musical é o trabalho de preparação para publicação, e diz respeito às escolhas feitas na apresentação desse material, principalmente quando se trata do trabalho de uma outra pessoa que não o compositor.
A publicação musical envolve a obtenção da obra a ser publicada, a partir de trabalho do compositor e/ou editor, financiamento da impressão, promoção, publicidade e distribuição das cópias.

Editoração é o trabalho de preparação técnica de originais. Chama-se editoração eletrônica o conjunto de atividades ou processos de montagem e apresentação gráfica, realizados por meio de programas e equipamentos computacionais. Portanto, o trabalho de editoração não se confunde nem com a edição, nem com a publicação, embora possa gerar uma impressão.
         Os quatro termos, portanto, embora estreitamente relacionados, designam atividades diferentes. Feitas estas distinções, passaremos a analisar alguns termos ligados à edição musical. O conhecimento desses termos, e da concepção editorial que neles está envolvida, tem o objetivo de fazer com que o regente coral possa escolher e utilizar as edições disponíveis, de acordo com seu objetivo e seu grau de conhecimento de tal repertório.

Edição Completa,
(Collected Edition, Complete works (Inglês), Gesamtausgabe, Sämtliche Werke, Werke (Alemão), Opera Omnia (Latim), Oeuvres Complètes (Francês)

Apresentam a obra completa de um autor, em vários volumes, num empreendimento que pode ser planejado para vários anos. Exemplos: Claudio Monteverdi – Opera Omnia, J. S. Bach – Werke
Monumenta (Latim), Monumentos

Denkmäler (Alemão), em inglês podem ser também Collected Edition, Complete edition ou ainda Monuments (também em francês)
Uma edição em vários volumes cujo objetivo é disseminar um repertório unificado de importância histórica, definidos por critérios nacionais ou  cronológicos, por exemplo. Podem utilizar uma única fonte ou fontes fortemente relacionadas. Exemplos: Musica Britannica, Monumentos de la música española.

Antologias
Referem-se a publicações históricas de seleções e excertos de fontes variadas, podem ser pequenas ou grandes antologias. Podem ter finalidade didática, em nível crescente, podem apresentar a escolha de um editor, podem ser agrupadas por gênero, nacionalidade, período. Exemplos: Antologia Coral (Graetzer)

Practical edition, performing edition (inglês)
Edição interpretativa ou de intérprete, edição prática. Muitas vezes traz apenas o nome do revisor ou intérprete, geralmente um grupo vocal ou regente conhecido por suas gravações e performances, tidas como modelo para a edição que leva seu nome.

Este tipo de edição traz informações detalhadas para performance, incluindo ornamentação, fraseado, articulações, sugestões de instrumentação, com base no conhecimento estilístico de um renomado intérprete. Este tipo de edição torna a música acessível a um grande número de músicos, e se constitui num importante documento sobre a história da interpretação da obra. Muitas vezes, este tipo de edição não indica as fontes utilizadas, o que torna difícil a distinção entre adições interpretativas e o texto original do compositor. Mais recentemente há edições práticas que tomam o cuidado de explicitar a intervenção editorial, satisfazendo às exigências práticas e, ao mesmo tempo, às exigências acadêmicas.

Urtext
Literalmente, "texto original", um termo que começou a ser usado no final do século XIX, como reação às edições interpretativas, que não permitiam o conhecimento das fontes originais. Designa uma edição que apresenta a partitura em seu estado original, sem intervenção editorial. O termo foi comercializado por casas editoras, especialmente G. Henle. Após um período de grande aceitação, atualmente a ideia de edições Urtext é discutida e ressignificada, principalmente no sentido de que qualquer edição musical envolve, necessariamente, a intervenção crítica do editor.

Edição Crítica, Critical edition (inglês)
Uma edição destinada a apresentar, para o estudo e a performance, a melhor leitura da obra, baseada em fontes originais. Faz uso de técnicas acadêmicas de crítica textual, incluindo a comparação e transcrição de fontes. Corrige erros óbvios e apresenta variantes, quando encontradas. Pode incluir um comentário crítico, também chamado Critical apparatus ou Kritische Berichte (alemão)

Edição fac-símile (também chamada edição mecânica)
Reprodução de uma fonte original, manuscrita ou impressa, para fins de estudo ou performance. Embora os fac-símiles tenham tornado disponíveis fontes difíceis de serem consultadas, eles variam em qualidade, dependendo da técnica fotográfica empregada. Pode ou não conter comentários adicionais. Às vezes são incluídos fac-símiles em edições completas de música ou em obras  teóricas. Estritamente falando, fac-símiles não são edições, pois são reproduções de uma edição anterior ou de um manuscrito. A ampliação dos recursos eletrônicos expandiu enormemente a quantidade de fac-símiles disponíveis, tanto de fontes manuscritas como de primeiras edições, ou de edições esgotadas e anotadas.

Outros termos ligados à edição:
Edição diplomática – tentativa de reproduzir todos os detalhes do original, sem corrigir erros, o mais fiel possível ao original.

Edição exegética – o mesmo que edição crítica
Edição expurgada – são eliminadas passagens julgadas inconvenientes

Edição integral – não abreviada nem expurgada
Edição paleográfica – transcreve exatamente, na grafia original

Edição princeps – a primeira edição, edição príncipe
Edição autorizada – que recebe aprovação expressa do autor ou dos direitos autorais

Edição atualizada – com acréscimos e modificações
Edição de bolso – em formato pequeno, para estudo

Primeira edição (Erstdruck) – a mais antiga impressão de uma obra
Edição genética –  edição crítica que se centra na gênese da obra e suas transformações, analisando versões, acréscimos e supressões.

Susana Cecília Igayara-Souza
IGAYARA, Susana Cecília. Estudo de Repertório: informações sobre o autor e a obra. Material didático de apoio ao curso "Repertório Coral através das formas fundamentais - CMU0521". Departamento de Música. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. Revisão: 2011.

 

 

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