quarta-feira, 27 de julho de 2011

Os mistérios de ser artista lírico no Brasil - Artigo (quase) musical


“Gli enigmi sono tre, La morte è una!”

Se pararmos pra pensar, e gente pára tudo e diz: “quer saber? Vou entregar currículo em empresa de telemarketing!” Ultimamente percebi que uma grande quantidade de novos cantores líricos está surgindo, uma geração inteira, eu diria. Essas novas vozes, loucas por uma primeira oportunidade, precisam passar por tantos e tantos testes, que até mesmo Calaf, o príncipe semi-celebridade, acharia que o desafio imposto a ele seria mole!
O primeiro enigma que um cantor precisa resolver é: Qual técnica seguir? Como todos os colegas cantores sempre acham que o “meu professor é melhor do que o seu”, uma infinidade de opiniões aparecem. Já presenciei cantores veteranos trocarem de técnica no auge de suas carreiras,influenciados por “milagres” feitos com a voz de fulano de tal...como aprendi com o meu professor(“que é melhor do que o seu!”),a melhor técnica é aquela que tez faz obter o melhor resultado com o menor esforço.Simples.Mas quantos anos se leva pra compreender isso?
Resolvido o primeiro enigma, vem logo o segundo: Por onde começar? Centenas de profissionais são despejados por ano em um mercado que praticamente não existe! Ou alguém aí já abriu os classificados de um jornal e se deparou com um anúncio do tipo: ”Teatro de ópera em expansão admite tenores jovens e entusiasmados, que tenham vontade de crescer. Carteira assinada, férias, vale-transporte, cesta básica, décimo - terceiro. Necessário dó agudo inquebrável. Comparecer nesta segunda, munidos de pianista acompanhador.”
Parece que estudamos tanto para ter uma profissão que não existe... e o que dizer do colega que resolve ser regente?????. Ora, se todos os sonhos líricos dos tenores, sopranos, baixos e contraltos desaparecerem na fumaça, tal qual uma Rainha da noite, restam os grupos de “casamento”, não é? Sem jamais desmerecer ou menosprezar os profissionais desse segmento (eu sou um deles, inclusive), eles oferecem ao menos uma opção para nós, tenores, por exemplo, de sentir por alguns instantes a sensação de estar na pele de Calaf, exclamando sua vitória aos berros, enquanto ali ao lado, um casal de noivos chora emocionado ao abraçar os padrinhos... pois estar no palco,cantando esse papel inteiro,é algo que poucos no mundo tem a oportunidade...
Mas voltando ao colega que sempre tirou 10 em harmonia, contraponto e afins, que decidiu praticar levantamento de batuta, esse sim, tem coragem! Eis uma profissão de alto risco. Tem gente que nem sabe o que é.
Recentemente, recebi um email de uma colega que estava se formando em regência, e que precisava de cantores que topassem cantar “na faixa” um concerto com uma obra coral de Villa-Lobos. Fiquei comovido com sua situação, pois uma jovem regente, recém-formada, após estudar anos, precisava contar com a boa vontade dos colegas para apresentar seu primeiro concerto, e que provavelmente, também não seria remunerada. Mas infelizmente não pude ajudá-la.Tive de trocar Villa-Lobos e seu monumental Choros 10,por outro tipo de choro: o dos noivos,no casamento...que dureza!
Falando em coral, chegamos ao terceiro enigma do cantor: Coro. Essa palavra que desperta ao mesmo tempo,amor e ódio nos cantores.
Eu sempre gostei muito de cantar em coro. Minha base musical foi construída graças a minha participação em diversos coros,cada um com um enfoque diferente.Mas aí,um belo dia,você precisa decidir qual caminho seguir,ou pelo menos,priorizar. É uma pena que aqui no Brasil exista uma coisa (não declarada, óbvio), de que “cantor de coro, será sempre cantor de coro, e solista será sempre solista”... há exceções,sem dúvida,mas que o fato de cantar em coro dificulta muito a vida de quem visa uma carreira como solista,isso é fato! Primeiro, pela própria vontade do cantor, que vê no coro uma pseudo-estabilidade profissional (leia-se financeira, também). Depois,vem aquela falsa sensação,por parte dos contratantes,que “fulano canta no coro,então,não é tão bom assim”...quantas vezes já ouvi isso! Cantores e contratantes: Unam-se! Deixem dessas bobagens! Se esses conceitos e pré-conceitos mútuos acabarem, a música lírica só tem a ganhar.
Às vezes, diante dessas coisas, dá vontade de usar aquela frase lá em cima, proferida por aquela montanha -de -gelo-sino-italiana em forma de soprano, chamada Turandot, mas em uma tradução livre, como: “Os enigmas são três, mas a morte é certa, meu caro!!!”
Ah,mas eu sou brasileiro,e não desisto nunca! A aurora operística de São Paulo está ressurgindo, emoldurada pela reabertura do Teatro Municipal, que soa como música aos ouvidos de uma classe que, apesar de tudo resiste, e se for um pouco mais unida, vencerá!
Eu faço minha parte. Vamos juntos?

“Gli enigmi sono tre, una è La vita!”

Ulisses Montoni é tenor, ator, e escreve sobre música de um ponto de vista pessoal, mas sempre focado na razão e o bom senso.

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