quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Norma em tom político

Ugo Giorgetti apresenta a partir de hoje sua versão da obra-prima de Bellini

Estreia hoje no Teatro São Pedro uma nova montagem de Norma, de Bellini, uma das óperas mais amadas do repertório lírico italiano - e que contém uma das mais célebres árias de todos os tempos, "Casta Diva". Conta a história da sacerdotisa Norma, que mantém uma relação amorosa secreta com o oficial romano Pollione, com quem tem dois filhos. A história se passa no território da Gália durante a ocupação romana, meio século antes do nascimento de Cristo.
Obra-prima do bel canto, a montagem conta com a orquestra do teatro regida por Emiliano Patarra, cenários de Carla Café e figurinos de Carolina Bertier. No papel-título que fez a glória imortal de Maria Callas está Maria Pia Piscitelli (ela já encarnou Norma no Colón e na Ópera de Massy, França). E no elenco destacam-se outros talentos, como Marcello Vannucci (como Pollione), Denise de Freitas (Adalgisa) e Federico Sacchi (Oroveso).
Apesar desses atrativos, as atenções concentram-se mesmo na estreia do cineasta Ugo Giorgetti como diretor de cena em palcos líricos. Aos 68 anos, o oriundi de terceira geração traz em sua biografia ligações profundas com o mundo lírico. "Meu pai era engenheiro e intelectual", conta em entrevista ao Estado. "Norma era uma de suas óperas preferidas e a ouvi muito desde criança. Quando a orquestra do Teatro São Pedro atacou o prelúdio sinfônico, me dei conta de que até enjoei dessa música, por tê-la ouvido tanto em criança."
É possível que o convite para este primeiro trabalho lírico deva-se à sua afinidade com a música, uma de suas duas paixões básicas (a outra é o futebol, que lhe propiciou os dois belos documentários Boleiros e aos leitores deste jornal suas crônicas aos domingos). Do lado musical, Giorgetti assina um dos mais delicados e refinados documentários recentes, Variações em Torno de Um Quarteto de Cordas, em que enfoca a longa vida de Johannes Elsner, violista do Quarteto de Cordas do Teatro Municipal de São Paulo por mais de meio século.
"Sou homem de cinema, tenho de dar uma visão cinematográfica - pensei quando recebi o convite. E depois percebi que isso ocorre instintivamente." Um desses diferenciais é a direção de atores. "A ópera - diz ele - está em descompasso com as conquistas do teatro e do cinema. Aqui se pratica um tipo de atuação estereotipada demais. Disse para os cantores que se expressassem mais pelo canto e menos pelos gestos. O cinema e a TV contaminaram tudo. Continuar com esse gestual é confrontar-se com essas áreas, e o público pode achar ridículo esse tipo de interpretação."
Giorgetti assistiu às duas montagens em DVD lideradas por superstars: a de Montserrat Caballé (1974, ao vivo no Théâtre Antique Orange na Provença francesa que qualifica de "encenação tradicional, sofrível"); e a de Joan Sutherland, em montagem canadense de 1981, "pesada, bem tradicional, com ênfase excessiva no aspecto religioso". O Oroveso, observa Giorgetti, "entra como se fosse um papa. Claro que o lado religioso existe, mas preferi enfatizar mais o lado político do ótimo roteiro de Romani".
Este talvez seja o maior diferencial da proposta cênica do cineasta. "Acima da religiosidade, eles são primeiro rebeldes diante de um poder opressor. Esta ópera poderia tranquilamente se passar hoje no Iraque, ou no Afeganistão, quando alguém se apaixona pelo inimigo. Neste sentido, ela é bastante atual. Nossos druidas não são religiosos, mas rebeldes desorganizados. Vejo a Norma menos como líder religiosa e muito mais como líder política. O coro passa o tempo todo clamando contra os romanos, tentando matar os romanos."
A cortina. Em ópera, nos ensina Rossini, contemporâneo de Bellini, é preciso fazer gol nos primeiros dez minutos para capturar a atenção do público. Daí os vertiginosos primeiros dez minutos de seu Barbeiro de Sevilha. E no caso da Norma? "Confesso que pensei de cara "estou ferrado" quando constatei que entre uma e outra ária há enormes trechos de música em que literalmente não acontece nada. E a abertura de mais de cinco minutos. Em geral, a cortina está fechada na abertura. Neste caso, mandei abri-la a partir de determinado compasso, para haver alguns elementos em cena. Bellini começa com o pé no acelerador, então trabalhei com elementos interessantes baseados na bandeira romana. Nesse ponto, não sou só de cinema, como de publicidade - quando vejo cinco minutos de cortina fechada, entro em pânico."
O público terá cinco chances para conferir a montagem "política" da Norma, com nova proposta de direção de atores mais afim às técnicas cinematográfica
João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADO - O Estado de S.Paulo

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