Em janeiro de 1992 encontrei o compositor Camargo Guarnieri
no aeroporto de Curitiba. Desde 1983 estabelecemos uma relação de amizade,
sendo que ele me convidou duas vezes para reger a sua orquestra (da USP) e foi
assistir diversos concertos que eu regi em São Paulo. Este encontro no
aeroporto foi muito triste. Tomamos o mesmo avião em direção a São Paulo (eu ia
para Brasília) e pude presenciar a angustia de um compositor brasileiro que se
via esquecido. O prestigio que ele teve nos anos 50 e 60 havia desaparecido e
sua obra era pouco executada. Em diversos momentos ele chorou, e chegou a dizer
que Deus tinha se esquecido de chama-lo. Ele não queria mais viver. Difícil
acreditar que estava diante do maior compositor brasileiro vivo. Faleceu quase
que precisamente um ano depois. Começo com a breve narrativa deste encontro
para refletir um pouco sobre a musica e sobre os compositores de musica erudita
de nosso país. Nada, creio eu, mais adequado do que falar disso no “dia da
pátria”.
A situação de um compositor brasileiro de musica erudita não
é algo fácil. Criadores extremamente competentes como Almeida Prado
(1943-2010), que o próprio Guarnieri definia como seu mais talentoso aluno, são
completamente desconhecidos do publico brasileiro. Julgo o caso Almeida Prado o
exemplo mais drástico do desprezo de um importante compositor dentro de seu
próprio país. Mas mesmo que tomemos o nosso maior compositor, Heitor
Villa-Lobos, o desconhecimento é bem significativo. Ele foi autor de mais de
400 obras, e é lembrado hoje por menos de 10% de sua produção. O que mais me
irrita é que países mais fortes econômica ou culturalmente impõem até a nós
brasileiros, compositores muito menos interessantes. Um livro americano,
rapidamente traduzido para o português, é um exemplo intrigante disso. O livro
se chama “O Resto é Ruído” de Alex Ross ,uma história da música do século XX.
Neste livro, muito rico de informações extremamente interessantes, de suas
quase 700 paginas, são circunscritas a apenas 3 páginas para que seja
brevemente citado algo de Villa-Lobos .No entanto ele necessita mais de 40
páginas integrais para falar do compositor americano Aaron Copland. Aliás,
Villa-Lobos é o único compositor sul americano citado no livro. Para ele
Alberto Ginastera e Camargo Guarnieri simplesmente não existiram, ou não foram
importantes o suficiente para serem citados. Em resumo, para os americanos, e
também para os europeus, a musica brasileira é, em geral, algo dispensável.
Agora em tom de desabafo perguntaria para vocês: as sinfonias de Camargo
Guarnieri são inferiores às Sinfonias de Roussel ou de Copland? O Noneto de
Villa-Lobos é inferior e menos criativo e inovador do que as peças corais do
americano Charles Ives ? Os Quartetos de Cordas de Mignone são inferiores aos
quartetos de Samuel Barber? Então por que estas partituras não conseguem se
impor de maneira definitiva, e não frequentam com assiduidade as grandes salas
de concerto? A culpa é toda nossa. O Brasil não tem estrutura básica de
educação para reconhecer seus próprios gênios. Além de não termos poder
econômico para impor nossos bons criadores (e não me refiro só à música), o
nosso povo não dá importância ao seu próprio patrimônio cultural . Vou
exemplificar o que digo. No ano de 2004, a cidade de São Paulo comemorou 450
anos de fundação. Para o quarto centenário , 50 anos antes disso, em 1954 , foi
encomendada a Villa-Lobos uma obra especialmente pensada para esta ocasião. Ele
se utilizou inclusive de poemas do Padre José de Anchieta, o fundador da
cidade, e mistura na obra sons indígenas e religiosos. É a sua Sinfonia N° 10,
Sumé Pater Patrium, Ameríndia, para solistas grande coro e grande orquestra.
Esta monumental partitura já foi gravada algumas vezes, sempre no exterior.
Acredito que uma obra brasileira seria o mais indicado para um concerto que
comemoraria os 450 anos da fundação de São Paulo, e que esta obra de
Villa-Lobos seria mais apropriada ainda, exatos 50 anos depois. No final de
2003 conversei com um dos responsáveis pela programação comemorativa aos 450
anos da fundação de nossa maior cidade, e disse a ele da existência desta obra,
e como seria oportuno executa-la nos festejos. Sua resposta (em outra língua,
já que não se dignava a falar português) foi que “Villa-Lobos era um compositor
subdesenvolvido para escrever sinfonias”. E no dia 25 de janeiro de 2004, 450
anos da fundação de São Paulo, foi executada a Missa Solemnis de Beethoven.
Classifico isso de vergonhoso. Nada contra a genial Missa de Beethoven, mas,
por exemplo, quando se comemorou a reunificação de Berlim, certamente não se
executou o Te Deum de Berlioz ou a Missa de Bernstein. Executou-se a Nona
sinfonia de Beethoven. Os alemães, como nação, não aceitariam algo diferente.
Nós, infelizmente, aceitamos. E aplaudimos de pé.
Não sou de ter sentimentos nacionalistas, mas me sinto muito
orgulhoso quando ouço páginas magistrais como os Choros de Câmera de
Villa-Lobos, os Quartetos de Mignone, os Ponteios de Guarnieri ou as Cartas
Celestes de Almeida Prado. Meu orgulho está em compreender o enorme esforço que
meus compatriotas fizeram, com a certeza de que nunca seriam reconhecidos.
Osvaldo Colarusso
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