terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ele brilhou sozinho


 Altamiro Carrilho 

No dia 15 de agosto, silenciou a flauta mágica de Altamiro Carrilho.
No final do Século XIX, a música de salão europeia, recheada de instrumentalidade da música de concerto, chegava aos países da América e se infiltrava na cultura popular. No Brasil e nos EUA, em consequência de fatores sociais, ela provocou novas e diferentes realidades artísticas,
Na América do Norte, permeou os cabarés de Nova Orleans e as cidades às margens do rio Mississippi e seus afluentes, verdadeiro “rio da unidade nacional” como o nosso São Francisco. Motivou o aparecimento do jazz, que depois se espalhou por todo o país. Como a cultura e os costumes de origem africana foram completamente tolhidos nos Estados Unidos, o jazz permaneceu “branco” por muitos anos. Aqui, a ausência de conflitos raciais e a miscigenação se incumbiram de “envenenar” essa música de salão, introduzindo nela a síncope e o frenesi rítmico de origem africana, o que logo fez surgir à improvisação, o virtuosismo instrumental eu uma nova linguagem musica. A designação que determinada esta variada forma de expressão instrumental era o “choro” e o instrumento líder era a flauta. Do fim do século XIX para cá, surgiu uma verdadeira legião de virtuoses desse instrumento, como nomes com Joaquim Calado, Patápio Silvio, Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Benedito Lacerda, Dante Santoro, Manezinho da flauta, Copinha, João Dias Carrasqueira, Carlos Poyares e tantos outros, figuras que em nada deviam aos nossos grandes nomes das salas de concertos. O ponto culminante desse virtuosismo e dessa originalidade instrumental flautística foi atingido por Altamiro Carrilho.
Nascido no interior do Rio de Janeiro no ano de 1924, Altamiro foi motivado por instrumentistas amadores de sua família a interessar-se ela música Construía flautas de bambu com as quais arriscava seus primeiros improvisos. Aos 11 anos, tocou percussão numa banda e aos 16, ao mudar-se para Niterói teve primeiras aulas com um carteiro. Trabalhando como farmacêutico, conseguiu comprara sua primeira flauta, passando a estudar seriamente música durante as noites. Por sua imensa facilidade no manuseio do instrumento, conquistou o primeiro lugar num concurso radiofônico apresentado por Ary Barroso. Pela força do rádio à época, seu nome se espalhou rapidamente nos meios musicais. Foi então convidado para substituir Benedito Lacerda, outro gigante da flauta e parceiro de Pixinguinha no conjunto regional de Canhoto, então importante violonista.
Nos anos de 1950, Altamiro formou sua própria “bandinha”, na qual atuava coo solista de flauta e flautim e com o qual fazia programas regulares na rádio e na TV. A música “Rio Antigo”, sucesso então, chegou a vender 700 mil cópias. Na década de 1960, cada vez mais conhecido, realizou inúmeras excursões pelo Brasil e exterior, visitando mais de quarenta países, inclusive os Estados Unidos, União Soviética, México, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Inglaterra. Gravou discos que revelavam com clareza seu virtuosismo e sua originalidade interpretativa, tais como: “Era só o que flautava” 1960, “Desfile de sucessos” 1961 e “Choros imortais” 1964. A partir de então, seguiram-se mais de cem gravações e duzentas composições em uma carreira de brilho de raras proporções. Com facilidade, expressivos nomes da música brasileira atribuíam a Altamiro distinção de maior flautista brasileiro de todos os tempos.
Admirador que sempre fui de seu talento, por três oportunidades o convidei para tocar um concerto de Mozart com orquestra: uma vez com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, outra com a Sinfônica Nacional da Rádio MEC e outra com a Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo. A grande atração desses concertos era quando chegava à cadência. Altamiro apossava-se dos temas mozartianos e os transformava em malabarismos extraídos da linguagem do choro, misturando frases clássicas com nossos motivos. As cadências eram intermináveis e os aplausos, mais ainda. Mais tarde, tive oportunidade de gravar um disco com a Sinfônica Brasileira, no qual ele foi solista de um concerto para flauta de Vivaldi, que em suas mãos, parecia um grande choro barroco.
Quando a Filarmônica de Berlim esteve por aqui no ano de 2000, convidei vários músicos da orquestra a tomar umas caipirinhas na minha casa. Para mostrar algo muito original a eles me ocorreu convidar Altamiro e seus chorões. Por sorte, de passagem por São Paulo em viagem a Curitiba, eles aceitam meu convite e se apresentaram por hora a fio. Quando fiz a introdução disse aos filarmônicos “Jean Pierre Rampal declarou que existem flautistas e existe Altamiro Carrilho” a rodada de música brasileira se estendia por todo o dia e, num dado momento eu disse aos músicos “pessoal, fui convidado para jantar com o maestro de vocês” Imediatamente veio à resposta “não se preocupe maestro. Sinta-se a vontade. Pode ir jantar com Abbado”.
Fui jantar e ao voltar por volta das 11 horas da noite, todos os músicos ainda estavam em minha casa, com montanhas de garrafas de cachaça vazias, tudo sob o império do choro e da música brasileira. Cumprimentei mais uma vez aos filarmônicos e disse. Ainda hoje de manhã falamos sobre o grande nome da flauta na atualidade. Jean Pierre Rampal. Pois bem. “Ouvi no rádio que ele acaba de morrer em Paris”. Ao que um dos flautistas da Filarmônica de Berlim se levanta e diz “Agora Altamiro pode brilhar sozinho”
Júlio Medaglia

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