quinta-feira, 10 de março de 2011

Morte ou transfiguração

Gilberto Mendes

Que comentário mais estapafúrdio, comparar o trabalho da Camerata Aberta, sem dúvida magnífico, com o trabalho do Festival Música Nova, conforme fez o jovem compositor Leonardo Martinelli em entrevista para a prestigiosa revista Concerto. Um festival é um festival é um festival, diria a poeta Gertrude Stein. Martinelli fala da desorganização recente, que o festival está perdendo terreno e prestígio, o que não deixa de ser verdade. Acontece, porém, nas melhores famílias!
O Festival já acabou e renasceu duas vezes, a última salvo pelo professor Lorenzo Mammi, via Centro Maria Antonia. A crise atual é séria, parece definitiva, mortal. Pena que à beira de seus 50 anos de vida. Já era tempo do Festival ter sido encampado por alguma instituição governamental ou coisa parecida.
Contudo, é impressionante que, neste seu fim de vida, e com todas essas dificuldades, tenha podido apresentar, nos dois últimos anos, algo tão extraordinário como Machinations, de George Aperghis, e ainda por cima pelo mitológico IRCAM, ou seja, o próprio grupo que abalou os meios musicais franceses com a execução dessa insólita maquinação musical, que foi realmente algo de muitíssimo novo na frente ocidental da música de vanguarda destes últimos tempos. Tivemos também o lançamento de um CD de autor brasileiro, pelo Ensemble Música Nova dirigido por Jack Fortner, o Quarteto Arditi, música eletrônica em tempo real no workshop de Russel Pinkston na USP, as intrigantes ondas cerebrais de Alvin Lucier, os deliciosos, eletrizantes instrumentistas do l"Instant Donné, 2e2m, Les Percussions de Strasbourg.
E ainda o mais badalado grupo nova-iorquino, que é o Ensemble Continuum, com seu celebrado diretor Joel Sachs, que também dirige o departamento de música contemporânea da Juilliard School e programa o famoso Summer Garden do MoMa. Já pensaram o que seria uma entrevista com ele, com o pessoal do IRCAM? Os dois polos da música nova aqui presentes, Paris e Nova York, que prato mais cheio para as mais acaloradas discussões sobre os contraditórios destinos da música erudita hoje! Mas onde estavam nossos intelectuais, os colaboradores de revistas de arte, de música? Eles nunca ouviram falar nessas coisas, nessa gente? Verdade, mesmo, que só conhecem Caetano e Chico Buarque? Onde estava a TV Cultura, seu provinciano Metrópolis? Uma TV cultural que já deixou de cobrir a maior mostra de música brasileira erudita no exterior, sete memoráveis concertos no Carnegie Hall de Nova York, tendo Lucas Mendes como seu repórter nessa cidade!!! Vinte compositores nossos foram convidados e recepcionados por uma comissão formada por nomes como Philip Glass, David Lang, John Adams, Charles Wuorigen.
Joel Sachs leva de nosso festival para Nova York uma obra brasileira que gostou muito, mais a jovem pianista Beatriz Alessio, que o impressionou vivamente, para completar seu doutorado na Juilliard School. Onde estavam nossos comentaristas, nossos críticos musicais, foi preciso alguém de fora para descobrir novos talentos brasileiros? Até que Leonardo Martinelli merece cumprimentos. Falou mal, mas falou do Festival, o único em todo o elenco de entrevistados pela revista Concerto.
Um Festival que fundei em Santos (1962) e dois anos depois já apresentava o lendário Duo Kontarski, porta-voz inicial da música de Boulez e Stockhausen, que nos fora oferecido de graça pelo meu amigo Koellreutter, através do Instituto Goethe. Impossível falar de tantos nomes ilustres do exterior que em seguida foram apresentados, mas vale lembrar, pelo menos, de um Frederic Rzewski, um Jorge Peixinho, Wilhelm Zobl, de um Lejaren Hiller. E de excelentes grupos, como o Kunstarbeiders Gezelschap, com o compositor alemão Dieter Schnebel, o Accroche Note, Ensemble Aleph, Antidogma de Turim, l''Itineraire, e o famoso Ensemble Contrechamps, que veio com seu fundador, o renomado, respeitadíssimo crítico musical suíço Philippe Albèra. Depois dos concertos, confraternizávamos com toda essa gente no Restaurante Almeida, ali pertinho de nosso Teatro Municipal, quando a conversa então ficava boa demais, regada a bom vinho, bife acebolado e caldo verde. Os bons tempos que não esqueceremos. Jamais !



GILBERTO MENDES É COMPOSITOR E CRIADOR DO FESTIVAL MÚSICA NOVA
05 de fevereiro de 2011
O Estado de S.Paulo
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110205/not_imp675494,0.php

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