Na mais recente edição da Revista CONCERTO (da qual sou colaborador desde 2006) foi publicado um breve depoimento meu dentro de uma série retrospectiva sobre a temporada 2010, na qual diversos músicos, jornalistas e produtores foram convidados a dar suas contribuições. Meu depoimento pode ser conferido na íntegra neste link, mas em suma, em meu papel de músico – “dublê” de jornalista, profissão de fé compositor – procurei abordar os fatos (sejam eles “bons” ou “ruins”) mais marcantes, tanto na cena clássica geral como no meu nicho artístico, isto é, a música contemporânea. É o mínimo que se espera quando se dá a voz a um compositor.
Então, por isto, destaquei os dois fatos mais marcantes nesta área, a criação da Camerata Aberta e o atual status quo do Festival Música Nova (FMN). A Camerata Aberta deslumbrou sua audiência com um trabalho musical sério e competente, com concertos de repertório instigante, bem divulgados e sempre com uma excelente presença de público. Já o FMN, que há anos patina em termos de organização de produção, atingiu seu ponto culminante. Por exemplo, sua divulgação foi tão ineficiente que a Revista CONCERTO sequer conseguiu publicar sua programação, pois ela não havia sido enviada até o fechamento da edição do mês em que ocorreu o FMN (e olhe que na revista trabalha-se com prazos relativamente generosos para divulgar, sempre gratuitamente, os mais diferentes tipos de eventos na área clássica).
A esta comparação o compositor Gilberto Mendes, criador do FMN, chamou de “estapafúrdia” em seu artigo publicado no último domingo no jornal O Estado de S. Paulo, ao qual se seguiu uma defesa do FMN através da enumeração dos muitos feitos realizados pelo evento.
Gilberto Mendes foi, é e sempre será uma pessoa e um artista a quem sempre devotarei minha mais sincera admiração e respeito. Tive inclusive o privilégio de fazer uma matéria de capa para a revista em outubro do ano passado, após passar agradáveis horas em sua companhia durante um longo bate-papo que tivemos em seu apartamento, na cidade de Santos. “Salve Gilberto” é o que sempre direi, não importa as circunstâncias.
Mas, ora, do jeito que as coisas foram expostas, até pareceu que eu estava a encampar uma batalha contra o festival!
Em tempo, eu mesmo “participei” da última edição do FMN, na medida em que houve uma peça minha interpretada. Poucas semanas antes do evento, fui sondado pela pianista e amiga pessoal Beatriz Alessio para mandar uma peça para a apresentação que ela faria ao lado do violoncelista Roham de Saram, que já foi integrante do prestigiado Quarteto Arditti e que é um dos grandes “músicos contemporâneos” da atualidade. Não tinha especificamente uma peça para esta formação, mas no entusiasmo de poder trabalhar com músicos tão gabaritados, reorganizei minha agenda e compus uma peça que foi estreada na última edição do FMN. Isto fez com que eu acompanhasse um pouco do trabalho de bastidor do evento, testemunhando quanto esforço os músicos tiveram que empreender para superar as dificuldades geradas pela “organização” do evento.
Em seu texto Gilberto parece não discordar de minha crítica (“Na música moderna, contrasta-se a criação da Camerata Aberta e seu exuberante trabalho com a desorganização do tradicional Festival Música Nova, que a cada ano perde terreno e prestígio nesta área tão importante para a cultura do país”[...]), mas sim da comparação. Mas, independentemente da proposta editorial do depoimento – onde mais estapafúrdio ainda seria eu colocar no mesmo balaio produções de ópera, Osesp, festivais e a morte de Almeida Prado – a comparação entre a Camerata Aberta e o FMN é assim tão disparatada?
Ambas não assinam um compromisso com a arte contemporânea? Ambas não envolvem a questão da música contemporânea enquanto um espetáculo musical atraente para a audiência brasileira da atualidade? Ambas não envolvem muitas vezes os mesmos músicos? Ambas não se preocupam com a ampliação do público? Ambas não envolvem um esforço de logística e de produção?
Apesar de em termos de tempo a Camerata Aberta ter seu esforço distribuído ao longo do ano, e o FMN concentrado em alguns dias, ainda assim penso que só em um aspecto esta comparação não pode ser realizada, isto é, nos termos da institucionalização e apoio governamental.
A Camerata Aberta teve o privilégio de nascer como um projeto institucionalizado, ligado às atividades da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP), e de forma pioneira, ofereceu toda uma infra-estrutura de produção, aliado a uma seguridade financeira a seus integrantes, então inédita em empreitadas deste gênero no Brasil. Por outro lado, o FMN há décadas sobrevive de forma heróica às intempéries da cultura tupiniquim, e como o próprio Gilberto coloca, “já era tempo do festival ter sido encampado por alguma instituição governamental ou coisa parecida”. Também acredito que institucionalização é um passo importante para consolidação de um projeto cultural do porte do FMN, mas sem rigor artístico (algo que nunca faltou ao evento) e organização, a institucionalização por si não é chave para a resolução de todos seus problemas. Não faltam no país orquestras, coros e outros tipos de corpos estáveis juridicamente institucionalizados, mas que por fatores mil, na prática estão confinados a uma existência meramente virtual em termos artísticos.
O FMN é algo que sempre existiu concretamente, e sua importância para a cultura musical brasileira é inconteste. Foi justamente a consciência desta importância que motivou minha observação, pois num país onde belas ideias e ações não raro morrem por inanição, estar atento ao entorno e propagar aos quatro ventos os feitos “bons” e “ruins” não deixa de ser uma forma de o cidadão exercer seu senso de responsabilidade cultural.
Ao mestre Gilberto, digo ter a convicção que estamos a batalhar no mesmo lado desta trincheira, e que talvez, estapafurdicamente, passamos por um incidente de “fogo amigo”. Acontece nas melhores famílias.
Revista Concerto
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